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Discutir o imposto sobre heranças

Esse tributo é um dos mais progressistas, pois compensa marginalmente a reprodução intergeracional da desigualdade

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Na década de 1980, já estava muito clara a desarticulação do pacto fiscal argentino. Em um livro clássico, Ricardo Carciofi expôs impiedosamente os profundos dissensos sociais, políticos e institucionais quanto à estrutura da arrecadação e dos gastos públicos, e atribuiu a desarticulação não a questões técnicas e de administração nem à burocracia, mas exatamente aos dissensos profundos.

Na ocasião, a locomotiva da desigualdade já havia começado a ganhar velocidade, carregando carvão em suas diversas escalas, do Rodrigazo (pacote econômico de 1975) à tabelinha da ditadura e à hiperinflação etc.

Ainda que hoje a locomotiva talvez avance com menos velocidade, estamos em uma encrenca: a desigualdade continua sendo um pesadelo, nosso déficit fiscal é descomunal e a pressão tributária é recorde. Bela combinação.

O problema é muito complexo, a solução é difícil, e demorará. Aqui, gostaria só de debater a pertinência de reinstituir o imposto sobre heranças, revogado por Martínez de Hoz (coisa nada surpreendente) há três décadas. Cabe informar que me baseei no trabalho de dois especialistas em quem confio muito. E na leitura de Piketty, que estudou a desigualdade nas economias ocidentais em longo prazo.

O tema é importante em si, e também porque nosso governo atual não tem o assunto em sua agenda (ao menos foi o que disse Dujovne). Como acontece com todos os impostos, três dimensões precisam ser consideradas: equidade, eficiência e administração tributária. Não há como escapar a essa tripla atenção.

O ministro da Economia da Argentina, Nicolás Dujovne, durante entrevista em Buenos Aires
O ministro da Economia da Argentina, Nicolás Dujovne, durante entrevista em Buenos Aires - Juan Vargas - 22.abr.2019/AFP

No que tange à equidade, existe um consenso claro: o imposto sobre heranças é um dos mais progressistas que se pode conceber. Compensa marginalmente a reprodução intergeracional da desigualdade; busca ampliar a igualdade de oportunidades entre uma criança que nasce hoje no Elefante Branco e uma criança que nasça em Puerto Madero.

Sem descer ao cinismo, eu diria que se trata de um liberalismo: ajuda a fazer com que as futuras trajetórias de vida dessas crianças não dependam tanto do berço, ou da sorte, e sim do mérito. A desigualdade está na ordem do dia e projeta sua sombra sobre o muito que ainda falta do século 21; boas políticas impositivas são uma das melhores ferramentas para combatê-la.

Sobre a eficiência, há mais discussão. Os detratores sinalizam que um imposto como esse desestimula a criação de empregos, a poupança e a acumulação de capital, e que causa anomalias (por exemplo, antecipação de heranças). Mas as provas empíricas quanto a isso estão longe de ser contundentes.

O efeito sobre o incentivo é relevante, mas a literatura favorável observa, por exemplo, que quanto mais alta for a alíquota de imposto, maiores tendem a ser as doações a entidades que promovem o bem público. Nada mal. Teríamos, em suma, um imposto relativamente menor em termos quantitativos, mas que poderia – segundo seus proponentes – complementar significativamente outras ferramentas de tributação progressiva (em especial porque pode incidir sobre ganhos de capital não realizados, que costumam não ser afetados pelo imposto de renda).

Mas para outros autores, como Piketty, que discutem o papel do mérito e das heranças em longo prazo, sua relevância histórica é muito maior. Segundo ele, a porção hereditária atinge, nos Estados Unidos, entre 70% e 80% da riqueza total. Parece haver margem de ação.

Por fim, há problemas de administração tributária e de concorrência entre jurisdições. Mas não existe imposto que não apresente problemas de administração, e a eficiência administrativa é sistêmica: os problemas de administração de cada imposto diminuem com a melhora na administração dos demais tributos, e das instituições como um todo.

A questão das jurisdições nos conduz à economia política de um hipotético imposto sobre as heranças.

Para começar, é fácil compreender que se trataria de uma proposta que ganharia popularidade sem precisar ser populista. Para nossos políticos, que vivem sob o telhado de vidro da imputação de que governam para os ricos, ou de que não passam de quadrilhas predatórias, a instituição de imposto sobre heranças seria fonte de legitimidade. As coisas que vereis, Sancho. O imposto sobre heranças está em vigor na província de Buenos Aires há mais de uma década, bem como em Entre Ríos, embora a arrecadação seja baixa.

Se o imposto for bem calculado e se a complicada questão jurisdicional for resolvida, e um "trade-off" justo entre equidade e eficiência for encontrado, poderíamos esperar arrecadação muito mais alta em nível nacional. Para Jorge Gaggero, o imposto é viável apenas com base em um acordo completo entre as províncias. O equivalente a meio ponto percentual do Produto Interno Bruto (PIB) estaria em jogo.

A futura orientação tributária da Argentina deveria buscar o estabelecimento de uma estrutura mais progressista, baseada em patrimônio e renda. É preciso descontar as reações negativas de toda origem (valores, ideologia, bolso e, por que não, boas razões), mas para isso existe o debate, a deliberação e a decisão democrática.

Vicente Palermo é cientista político e ensaísta argentino, fundador do Club Político Argentino e ganhador do Prêmio Nacional de Cultura em 2012 e do Prêmio Konex de Platino em 2016.

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Tradução de Paulo Migliacci

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