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China na Europa: parceiro ou rival?

Com um conflito latente com os EUA e muito dinheiro investido na região, tem a Europa razões para temer o poder da China?

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Paulo Pena
Diário de Notícias

​Em Kirkenes, no Ártico norueguês, com a Rússia e a Finlândia como vizinhos, vivem apenas cinco chineses. O dono do restaurante Xangai, a sua mulher, o cozinheiro e duas mulheres que casaram com noruegueses da terra. Mas em fevereiro a cidade descreveu-se como a “Chinatown mais a norte do mundo”. Em Komarna, uma aldeia em colina íngreme da Croácia, junto ao Adriático, a população local de cento e poucas pessoas mais do que dobrou, do dia para a noite, com a chegada de trabalhadores chineses. Em poucos anos, depois da crise econômica que abalou a Europa, os investimentos chineses cresceram. Do norte ao sul do continente. Nesses anos, Kirkenes passou a sonhar com um porto gigantesco, que vai ser o ponto de chegada da navegação da China pelo Ártico, quando o degelo o permitir. E Kormana vê nascer uma ponte que pretende sarar as feridas da guerra da ex-Iugoslávia, ligando o país (Croácia) ao enclave croata de Dubrovnik, sem as cercas da fronteira com a Bósnia-Herzegovina.

Linhas ferroviárias, pontes e autoestradas, portos, centrais e redes elétricas, fábricas de alta tecnologia, empresas turísticas e bancos –em todos estes setores, as empresas chinesas, públicas e privadas, já investiram mais de 300 bilhões de euros na Europa, escreve a American Heritage Foundation, que mantém uma base de dados de todos os investimentos diretos chineses no estrangeiro acima dos 100 milhões de dólares. Em Portugal, a China investiu mais de 9 bilhões, comprando posições dominantes na EDP, da REN, no Millennium BCP, na Fidelidade...

E é muito mais do que muito dinheiro. Este investimento pôs vários cantos da Europa a imaginar o futuro, como Kirkenes, ou a resolver o passado, como Kormana. Foi a solução para as maiores privatizações em Portugal, durante a troika. Foi disputado pela França e pela Alemanha. Mas agora parece começar a causar dúvidas. Recentemente, dirigentes políticos da UE manifestaram-nas. A concorrência entre a China e a Europa "não é justa", queixou-se o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. "O tempo da ingenuidade europeia tem de acabar”, exige o presidente francês Emmanuel Macron. Pela primeira vez, em março passado, um relatório da UE definiu a China como “um parceiro com quem a UE prossegue objetivos comuns" mas também como um "rival sistêmico que propaga um tipo diferente de governo". A Europa começa a recear que os milhares de milhões que recebeu da China a tornem, de alguma forma, dependente de Pequim.

A Europa está, ainda, no meio de um dilema. Os Estados Unidos não. Já decidiram considerar que a China, é um inimigo comercial. Os EUA são o maior parceiro de negócios europeus. A China, o segundo. É esse perigo –o da guerra comercial entre esses dois maiores parceiros– que preocupa o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva: “Para nós europeus, esse é um dos grandes riscos que o mundo corre. Um cenário de guerra comercial traria efeitos muito negativos sobre o crescimento econômico mundial e tem hipóteses de provocar efeitos indesejáveis também na geopolítica.” 

Foi para perceber se este dilema é real, e se houve, de fato, “ingenuidade” na Europa, que o consórcio Investigate Europe (que o DN integra) visitou, nos últimos meses, alguns dos principais locais onde o investimento chinês é mais relevante. Entrevistamos governantes, diplomatas, economistas, historiadores, empresários chineses e retivemos uma das perguntas mais frequentes: deve a Europa temer a China?

Gestores e sindicatos elogiam

Os investidores da China compraram mais de 160 empresas europeias de ponta, por preços entre os 100 milhões e os 50 bilhões de dólares. O pico dessa chegada em força da nova China “global” foi em 2016. De então para cá, o investimento direto tem diminuído, na proporção inversa do receio europeu. Por isso fomos ouvir gestores e funcionários dessas empresas compradas pela China, da Noruega à Itália. A apreciação é positiva: as empresas compradas estão em melhor situação hoje do que antes da venda. Além disso, os investidores chineses "geralmente aderem às leis e acordos coletivos", explica o sindicalista alemão Rüdiger Luz, chefe do departamento de política empresarial do poderoso sindicato IG Metall.

Em Portugal, António Mexia chegou a temer que a chegada da China Three Gorges significasse uma mudança profunda na administração da EDP, e talvez a sua saída. Mas não é essa a rotina. Os investidores chineses tentam ser discretos, mesmo quando os seus milhões causam espanto.

Um exemplo disso é a empresa estatal chinesa ChemChina. Com vendas anuais de cerca de 30 bilhões de euros, a empresa comprou o grupo italiano de pneus Pirelli, o especialista francês em enzimas Adisseo, o produtor norueguês de silicone Elkem, o fabricante suíço de produtos químicos agrícolas Syngenta e o líder do mercado mundial alemão de máquinas de processamento de plástico Kraus-Maffei.

Após a aquisição da marca italiana, por mais de 7 bilhões de euros, em 2015, o CEO da Pirelli, Tronchetti Provera, está convencido de que o negócio foi "o melhor" possível. "Caso contrário, teríamos caído nas mãos dos concorrentes, e isso teria sido o fim da Pirelli."

Frank Stiehler, chefe da Krauss-Maffei, fabricante de máquinas sediada em Munique, também vê a sua empresa em boas mãos: “Hoje investimos duas vezes mais por ano do que nos anos sob a liderança de investidores financeiros ", disse Stiehler ao Investigate Europe. Estão a ser planeadas e construídas quatro novas fábricas, três das quais na Alemanha. Foram já criados 800 novos postos de trabalho.

O recorde destas aquisições sonantes aconteceu na Suíça, e com isso a ChemChina espantou o mundo dos negócios. Em 2015, todos os grandes grupos químicos entraram num leilão para adquirir a fabricante de agroquímicos Syngenta. "Era a nata da indústria, e todos a queriam", recorda um gestor alemão. Inicialmente, a Monsanto ofereceu 35 bilhões e os outros gigantes químicos da BASF à Dow Chemical fizeram ofertas de até 38 bilhões. Mas os chineses propuseram um valor ainda mais alto: 43 bilhões. E ganharam.

As críticas ao “modelo chinês”

É precisamente isso que assusta os líderes econômicos da Europa –a dimensão das apostas. A associação industrial alemã BDI alertou pela primeira vez no início do ano publicamente para o "modelo chinês de uma economia com forte influência estatal", que está "em competição sistêmica com economias de mercado liberais". "A indústria alemã tem uma grande preocupação", disse ao IE o chefe do departamento da BDI, Fridolin Strack. "A economia híbrida chinesa está a mobilizar enormes recursos para aquisições estratégicas na Europa." Estas "distorções de mercado" têm de ser "eliminadas", defende.

"A reciprocidade é a base de todas as relações comerciais", afirma Pierre Defraigne, do Colégio da Europa de Bruges, e antigo chefe de gabinete do Comissário Europeu do Comércio, Pascal Lamy. "Se demos demasiado espaço à China nos nossos mercados, temos de a restringir novamente. Mas a UE deve falar com a China a uma só voz. Agora, os dirigentes chineses falam sobretudo com os Estados-Membros e as reuniões com a UE são uma formalidade".

Como se pode “restringir” a China? Em termos concretos, a Comissão apresentou duas propostas. A primeira é um regulamento que exige, desde março, que os Estados-Membros analisem o investimento direto estrangeiro. O serviço de estudos da Comissão publicou um relatório sobre esse investimento na UE. Mas os números não parecem bater certo com a preocupação. O relatório analisava todas as empresas europeias detidas por estrangeiros. Em 2016, 29% eram detidos por empresas e cidadãos dos EUA e apenas 9% por chineses. Esta diferença é ainda maior quando se considera o valor dos ativos europeus com propriedade estrangeira. Nesse caso, os EUA estão na liderança com 62% e a China em sexto lugar com apenas 3%. Em 2017, 46% das aquisições na Europa foram feitas por empresas norte-americanas ou canadenses e apenas 7% por empresas chinesas.

A estratégia da Fosun

Wang Qunbin, 50, é o CEO da Fosun. Perguntamos-lhe se considera uma forma de protecionismo este mecanismo de avaliação do investimento estrangeiro, criado recentemente pela União Europeia. Qunbin parece desvalorizar: “A cooperação é um dos pilares das relações China-Europa. A China e a Europa têm uma parceria estratégica global e a China continuará a ser um parceiro fiel e importante da UE. A China e a UE não estão a tornar-se rivais. Apesar do novo mecanismo de avaliação do investimento, as empresas chinesas, nomeadamente a Fosun, continuarão a procurar oportunidades de desenvolvimento na Europa.”

A Fosun, que tem sede em Lisboa no Palácio do Loreto, no Chiado, é o maior investidor chinês privado em Portugal (Millennium BCP, Fidelidade, Luz Saúde). Wang Qunbin elogia o país: "Portugal dá estabilidade à Fosun: temos ativos muito bons e temos equipes de gestão fortes no país, o ambiente político é muito estável, mesmo depois da mudança de governo e a economia recuperou muito bem."

Mas por que decidiu a Fosun fazer de Portugal, como diz Qunbin, a “porta de entrada para o investimento na Europa”? Luís Mah, docente em Estudos de Desenvolvimento no ISEG e autor de um livro sobre o modelo de desenvolvimento chinês, explica: “Quando a Fosun compra a Fidelidade (seguradora portuguesa) recebe bilhões de euros em prêmios de seguros de saúde. Isso permite-lhe comprar cá e ao mesmo tempo responder ao desenvolvimento da classe média da China. Permite-lhe comprar o Club Med e ter um programa de férias para 200 milhões de chineses. Ou quando compra a Luz Saúde (saúde privada) tem a hipótese de levar o modelo de hospital privado para a China.”

Essa é, também, a explicação para os investimentos na EDP, sugere Raquel Vaz Pinto, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa e professora de Estudos Asiáticos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. “O que comanda o investimento chinês é a lógica interna. O que explica a liderança da China é o bem-estar doméstico. Por exemplo: o que torna a China tão interessada na preservação do ambiente? Há um problema, na China, com o alastramento de doenças respiratórias. A poluição dos rios e das terras tornou-se um problema grave. Por isso, a China vê a questão ambiental como crucial. E por isso investe na EDP, para ter acesso a tecnologia de ponta nas energias renováveis.”

O “erro” português

Há uma explicação simples para as razões que levam a China a comprar, de acordo com Luís Mah: “A China funciona muito bem no mercado capitalista. Tem uma lógica de investimentos eficientes.” Mais difícil é, talvez, conhecer as razões que levaram a União Europeia a pressionar algumas vendas em Portugal. “É irônico, fomos obrigados a privatizar numa lógica de economia de mercado liberal a duas empresas que representam o capitalismo estatal. Para mim, estrategicamente, é um erro”, avalia Raquel Vaz Pinto, falando da EDP e da REN, que nas últimas eleições europeias foi candidata pelo CDS ao Parlamento Europeu. A mesma posição tem o ministro socialista Augusto Santos Silva.

Ainda mais surpreendente é vermos Emmanuel Macron a subscrever essa mesma ideia: “A Europa, na sua resposta à crise econômica e financeira, empurrou vários Estados para privatizações forçadas sem uma opção europeia e decidiu, metodicamente, reduzir a sua soberania através da entrega aos chineses de uma série de infraestruturas essenciais no sul da Europa. Não vamos culpar os chineses por serem inteligentes, podemos culpar-nos a nós próprios por sermos estúpidos.”

Esta declaração de Macron foi feita em julho passado, numa reunião com diplomatas franceses, e coincide com o novo tom do discurso europeu que nos foi reforçado por um dos seus conselheiros, o ex-primeiro ministro francês Jean Pierre Raffarin. “O que nos falta é uma estratégia para a China”, reconhece.

A segunda medida tomada pela Comissão Europeia para reagir ao investimento da China parece dar razão à crítica de Raffarin: restringir o acesso das empresas chinesas ao mercado europeu de contratos públicos. O argumento usado para defender esta medida é a “reciprocidade”, uma vez que as empresas europeias não podem investir na China em setores como a agricultura, a aviação e os meios de comunicação social. "A China está ainda a abrir os seus mercados. É uma questão de paciência", explica-nos Zhang Yu, diplomata da missão chinesa na UE, em Bruxelas.

A ponte mais barata

O melhor exemplo da pouca utilidade desta tentativa de impedir as empresas chinesas de participar de concursos públicos na UE é a ponte que está a ser construída em Komarna. Na pitoresca baía do Adriático, os trabalhadores chineses constroem estruturas de aço a 120 metros de profundidade no fundo do mar, com enormes torres de perfuração. Em breve será inaugurada a ponte Pelješac, de dois quilômetros e meio, para ligar Komarna ao enclave croata de Dubrovnik –foram separados desde a guerra da Iugoslávia. Por todas as razões, práticas, diárias, ou culturais e identitárias, esta ponte é uma solução para um problema grave. Mas tardou. E só foi possível porque a União Europeia a financiou, com 357 milhões de euros. Houve um concurso público internacional, ganho pelo grupo estatal chinês CCCC.

Os construtores chineses importam 60.000 toneladas de aço da sua distante terra natal. Os mais de 200 trabalhadores chineses cumprem horários extenuantes e "fazem-no muito bem", diz Nikola Dobroslavić, chefe do governo local. Acima de tudo, são baratos e nenhum concorrente europeu conseguiu acompanhá-los. "Pagamos o menor preço possível pelo melhor resultado possível", destaca o político, que só tem elogios para a nova grande potência no mercado internacional da construção.

Bem mais acima, no centro de Kirkenes, no Ártico, as placas das ruas têm os nomes escritos em norueguês e em russo, em alfabeto cirílico. É uma memória da Guerra Fria, a realidade que imperou ali durante mais de meio século. Agora a terra tem também um pórtico chinês.

Kirkenes quer ser o ponto de entrada na Europa da prevista Rota Polar da Seda, o caminho marítimo que a “fábrica do mundo” está a preparar para tornar mais rápidas as viagens dos seus navios até o grande mercado de 500 milhões de europeus. Com o degelo nos mares árticos, a distância entre o norte da Europa e a China será 40% mais curta do que através do Canal de Suez e 60% mais curta do que pelo Cabo da Boa Esperança. Em 2040, segundo ameaçam os estudos, as alterações climáticas deixarão todo o norte navegável nos verões, do mar de Bering ao mar de Barents onde está Kirkenes.

A pressão americana

A pouco mais de 500 quilômetros dali, para Sul, fica Rovaniemi –a célebre terra onde a publicidade finlandesa nos quer fazer crer que vive o Papai Noel– e que será o eixo da linha férrea que ligará o futuro superporto norueguês, destino dos cargueiros chineses, à União Europeia. Mais para sul ainda está em projeto um túnel, também ele nos planos das autoridades chinesas, para ligar Helsinque, na Finlândia, a Tallinn, na Estônia, em menos de meia hora.

Por tudo isso, Mike Pompeu, o secretário de Estado dos EUA, esteve em Rovaniemi em maio, precisamente para elogiar a rota do Ártico –"os canais de Suez e Panamá do século 21", nas suas palavras. E, é claro, para criticar a China. “Queremos que as infraestruturas cruciais do Ártico acabem como as estradas construídas pela China na Etiópia, desmoronando-se e tornando-se perigosas ao fim de apenas alguns anos? Queremos que o oceano Ártico se transforme num novo mar do Sul da China, com militarização e reivindicações territoriais? Queremos o frágil ambiente do Ártico exposto à mesma devastação ecológica causada pela frota pesqueira da China nos mares ao largo da sua costa, ou a atividade industrial não regulamentada no seu próprio país? Acho que a resposta é bem clara…”

Do futuro para o presente é apenas um passo. Nos últimos meses, a diplomacia americana tem feito pressão sobre todos os estados europeus para que limitem o acesso da empresa chinesa Huawei à gestão tecnológica da nova rede móvel 5G. A Huawei, parceira tecnológica chinesa da Altice, em Portugal, está no centro dos esforços bem visíveis da embaixada americana em Lisboa –e em quase todas as capitais europeias. Até agora, só a Polônia e a República Tcheca aceitaram os argumentos americanos. Mas as pressões são intensas.

Da mesma forma, em Portugal, a concessão do novo terminal XXI do porto de Sines é uma matéria diplomática. A China, através da COSCO, o gigante estatal de transportes marítimos, já se reuniu, por diversas vezes, com a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino. O próprio Presidente da República reforçou o aviso, num encontro com empresários americanos, em junho. “Os chineses têm sempre um ministro a visitar Sines, quase todos os meses”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, que acrescentou um pormenor: o embaixador dos EUA em Lisboa sabe que “o tempo está a esgotar-se”. O concurso para a concessão do novo terminal de Sines ainda não foi aberto. E a China já controla 14 portos importantes na Europa. De Roterdã (Holanda) e Antuérpia (Bélgica), no norte, ao Pireu (Grécia) e Valência (Espanha), no Mediterrâneo.

A dependência da Alemanha

Quando a maior empresa naval chinesa, a COSCO, comprou o Pireu, o porto grego estava em 37º lugar na lista dos maiores da Europa. Agora, dez anos depois, ocupa a 6ª posição. No final de 2019 será o maior porto do Mediterrâneo. Os políticos locais e as pequenas empresas protestam contra o fato de a COSCO querer impor um monopólio no Pireu, onde tudo, desde as gruas aos parafusos, é chinês. A nível político, a COSCO parecia ter um canal direto com o gabinete do ex-primeiro-ministro Alexis Tsipras. Mas a principal ajuda que a empresa recebeu veio da troika, revela-nos Christos Lambridis, ex-secretário geral do Ministério da Navegação: “A pressão da troika de financiadores sobre a Grécia para acelerar as privatizações deu à China uma vantagem extra durante a negociação, porque eles sabiam bem que a Grécia era forçada a terminar o mais rápido possível com a privatização, a fim de obter a próxima parcela do empréstimo.”

Há também "uma parte de hipocrisia", diz Panayotis Kouroumblis, dirigente do Syriza: “À medida que a relação da Grécia com a China se aprofunda, vejo mais gente preocupada com isso, levantando questões e suspeitas. Mas não posso deixar de observar que essas pessoas têm os seus próprios laços privilegiados com a China. Veja-se, por exemplo, Hamburgo ou Duisburgo.”

Nenhum país da UE é mais dependente da China do que a Alemanha, de quem é o parceiro comercial mais importante. As empresas listadas no índice DAX-30, da bolsa alemã, geram 15% das suas receitas com a China. A BMW e a Daimler-Benz vendem ali quase um terço dos automóveis que produzem, mais do que em qualquer outro país. Na Volkswagen, o número sobe para quatro em cada dez veículos –quase metade do lucro do grupo alemão é gerado em negócios com a China.

Por isso, poucos estranharam quando o CEO da Daimler, Dieter Zetsche, veio a público pedir desculpas pelo "sofrimento e a dor causados ao povo chinês por um erro insensato e negligente". Numa publicação do Instagram, um agente de marketing da Daimler divulgou uma citação do Dalai Lama. E isso é a clara linha vermelha que a China não permite que ninguém cruze, nem o CEO de um dos maiores fabricantes automóveis do mundo: a integridade territorial. 

Exemplos como este não são frequentes (embora o responsável máximo da Volkswagen também tenha dito que desconhecia qualquer problema com a população uigure). O que sobressai de toda esta relação económica recente entre a UE e a China é a dependência real dos investidores europeus que estão a fazer negócios na China.

Esta é uma das principais razões para se temer um conflito comercial: os seus efeitos serão generalizados. Augusto Santos Silva reforça a importância desse fato para Portugal. Uma crise comercial penalizará sempre o país: “Basta fazer raciocínios deste tipo. Qual é o maior parceiro comercial dentro da Europa da China? É a Alemanha. Qual é o motor econômico da Zona Euro? É a Alemanha. Qual é o peso da Zona Euro no conjunto das exportações portuguesas? É praticamente de três quartos. É fácil perceber que não ficaremos imunes.”

Intermináveis comboios de contentores com caracteres chineses viajam 11.000 quilômetros até o seu destino final nas margens do Reno, em Duisburgo. Muitos caminhões e navios estão prontos para distribuir mercadorias –do mais recente modelo de smartphone à roupa made in China. A cena repete-se cerca de 30 vezes por semana e dá à estação de carga no bairro industrial aborrecido de Duisburgo um título imponente: dirigentes políticos e funcionários da cidade falam sobre o "fim da Rota da Seda", enquanto elogiam o crescente êxito do seu centro de transbordo de mercadorias chinesas, que encurta os prazos de entrega em três semanas em comparação com o transporte marítimo. A China, diz Erich Staake, o criador e chefe do projeto, "é um componente central para o nosso desenvolvimento futuro".

Por tudo isso, os economistas Jean Pisani-Ferry, conselheiro do presidente Macron, e Guntram Wolff, chefe do grupo de reflexão Bruegel, de Bruxelas, escreveram um memorando para a futura Comissão Europeia: "A tarefa central da UE será, por conseguinte, defender a sua independência econômica e, ao mesmo tempo, permanecer fortemente ligada aos EUA e à China.” O que pode parecer, agora, uma verdadeira quadratura do círculo.

Projeto investigativo do consórcio europeu de jornalistas Investigate Europe

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