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Documentos secretos mostram como o Irã exerce poder no Iraque

País vizinho ocupou vácuo deixado após queda de Saddam Hussein

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The New York Times

Em meados de outubro, com protestos correndo soltos em Bagdá, um visitante familiar chegou à capital iraquiana sem fazer alarde de sua presença.

A cidade estava assediada havia semanas, com manifestantes fazendo passeatas nas ruas, reivindicando o fim da corrupção e o afastamento do primeiro-ministro Adil Abdul Mahdi.

Queimando bandeiras iranianas e atacando um consulado do Irã, eles denunciavam especialmente a influência desproporcional do país vizinho sobre a política iraquiana.

O visitante chegara para restaurar a ordem, mas sua presença em Bagdá chamava a atenção para a maior queixa dos manifestantes.

O visitante era o general Qassem Soleimani, comandante da poderosa Força Quds iraniana, e ele viera para persuadir um aliado no Parlamento iraquiano a ajudar o primeiro-ministro a conservar-se no cargo.

Iraquianos passam por pôster do aiatolá Khomeini, fundador da República Islâmica do Irã, em Diyala, no Iraque - Sergey Ponomarev - 4.jun.2017/The New York Times

Não foi a primeira vez que Soleimani foi enviado a Bagdá para conter danos. Os esforços de Teerã para respaldar Mahdi fazem parte de sua longa campanha para conservar o Iraque como um Estado cliente e maleável.

Documentos iranianos vazados recentemente agora oferecem uma visão detalhada de quão agressivamente Teerã tem trabalhado para interferir nos assuntos do Iraque.

Os documentos estão contidos em um arquivo de telegramas secretos da inteligência iraniana obtido pelo The Intercept e compartilhado com o New York Times.

O vazamento inusitado expõe a influência vasta de Teerã no Iraque, detalhando anos de trabalho cuidadoso de espiões iranianos para cooptar os líderes iraquianos, pagar agentes iraquianos a serviço dos EUA para trocarem de lado e infiltrarem todos os aspectos da vida política, econômica e religiosa do Iraque.

Segundo um dos telegramas da inteligência iraniana vazados, Mahdi, que quando esteve no exílio cooperou estreitamente com o Irã na época em que Saddam Hussein estava no poder no Iraque e teve um “relacionamento especial com a RII” –a República Islâmica do Irã— quando foi ministro iraquiano do Petróleo, em 2014.

A natureza exata do relacionamento não é explicitada no telegrama, e, como ressalvou um ex-funcionário sênior dos EUA, “um relacionamento especial pode significar muitas coisas –não quer dizer que ele seja agente do governo iraniano”.

Mas nenhum político iraquiano pode se tornar primeiro-ministro sem receber a bênção do Irã, e Mahdi, quando alcançou o cargo em 2018, foi visto como candidato do meio-termo, alguém que tanto o Irã quanto os Estados Unidos considerariam aceitável.

Os telegramas vazados oferecem um vislumbre extraordinário do funcionamento interno do sigiloso regime iraniano.

E detalham o grau em que o Iraque caiu sob a influência iraniana desde a invasão americana de 2003, que transformou o país em porta de entrada para o poder iraniano.

O arquivo é composto de centenas de relatórios e telegramas escritos principalmente em 2014 e 2015 por oficiais do Ministério de Inteligência e Segurança iraniano a serviço no Iraque.

Versão iraniana da CIA, o Ministério de Inteligência tem a reputação de ser um órgão analítico e profissional, mas é ofuscado e frequentemente passado por cima por sua contraparte mais ideológica, a Organização de Inteligência da Guarda Revolucionária do Irã, criada formalmente como entidade independente em 2009 por ordem do líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei.

É a Guarda Revolucionária quem define a política iraniana no Iraque, Líbano e Síria.

Os embaixadores a esses países são escolhidos entre as fileiras seniores da Guarda Revolucionária, não do Ministério das Relações Exteriores, que comanda o Ministério da Inteligência, segundo vários assessores da administração iraniana atual e de administrações passadas.

Segundo essas fontes, representantes do Ministério da Inteligência e da Guarda Revolucionária trabalhavam em paralelo.

Eles apresentavam suas descobertas às suas respectivas sedes em Teerã, que, por sua vez, organizavam as informações em relatórios que eram entregues ao Conselho Supremo de Segurança Nacional.

Uma parte crucial do trabalho deles era criar vínculos com autoridades iraquianas, e isso era facilitado pelas alianças que muitos líderes iraquianos forjaram com o Irã quando faziam parte de organizações oposicionistas que combatiam Saddam Hussein.

De acordo com os documentos vazados, muitos dos principais funcionários políticos, militares e de segurança iraquianos tiveram laços secretos com Teerã.

O mesmo telegrama de 2014 que descreveu o “relacionamento especial” de Mahdi também apontou vários outros membros chaves do gabinete do ex-primeiro-ministro Haider al-Abadi como tendo laços estreitos com o Irã.

Contatado pelo telefone, Hassan Danaiefar, o embaixador iraniano no Iraque entre 2010 e 2017 e ex-vice-comandante das forças navais da Guarda Revolucionária, negou-se a falar diretamente da existência dos telegramas ou de sua divulgação, mas sugeriu que o Irã lidera a coleta de informações no Iraque.

“Sim, temos muitas informações sobre uma série de questões do Iraque, especialmente sobre o que os EUA estavam fazendo nesse país”, disse ele. “Há uma diferença grande entre a realidade e a percepção das ações dos EUA no Iraque.”

As cerca de 700 páginas de documentos vazados foram enviadas anonimamente ao Intercept, que as traduziu do persa ao inglês e as compartilhou com o New York Times.

O Intercept e o Times verificaram a autenticidade dos documentos, mas não sabem quem os vazou.

O Intercept se comunicou com a fonte por meio de canais encriptados, e a fonte se negou a encontrar pessoalmente um jornalista. 

Nessas mensagens anônimas, a fonte disse que queria “que o mundo ficasse sabendo o que o Irã está fazendo no Iraque, meu país”.

Com uma religião compartilhada e filiações tribais que atravessam os dois lados de uma fronteira nacional porosa, o Irã é uma presença importante no sul do Iraque há muitos anos.

O Irã abriu repartições religiosas nas cidades sagradas do Iraque, apoia alguns dos partidos políticos mais poderosos no sul do país, envia estudantes iranianos para estudar em seminários iraquianos e despacha operários iranianos para construir hotéis no Iraque e reformar santuários religiosos nesse país.

Mas, enquanto o Irã pode ter a dianteira sobre os EUA na disputa por influência em Bagdá, ele vem tendo dificuldade em conquistar apoio popular no sul do Iraque.

Como deixaram claro as últimas seis semanas de protestos públicos, os iranianos enfrentam resistência acirrada.

Em todo o sul do Iraque, partidos políticos iraquianos apoiados pelo Irã estão vendo suas sedes incendiadas e seus representantes assassinados –um indício de que o Irã talvez tenha subestimado o desejo iraquiano de independência não apenas dos Estados Unidos, mas também do país vizinho.

Em certo sentido, os telegramas iranianos vazados oferecem um relatório final dos resultados da invasão americana do Iraque em 2003.

A noção de que os americanos entregaram o controle do Iraque ao Irã quando invadiram o Iraque hoje é amplamente compartilhada, até mesmo nas fileiras militares dos EUA.

Uma história recente da Guerra do Iraque, em dois volumes, publicada pelo Exército americano, detalha os muitos erros cometidos na campanha e seus “custos chocantes” em termos de vidas e de dinheiro.

O estudo conclui: “O único vencedor parece ter sido um Irã encorajado e expansionista”.

A ascensão do Irã como influência poderosa no Iraque foi sob muitos aspectos uma consequência direta da ausência de qualquer plano de Washington para o pós-invasão.

Os primeiros anos após a queda de Saddam foram caóticos tanto em termos de segurança quanto da falta de serviços básicos como água e eletricidade.

A impressão que tinha a maioria dos observadores em campo era que os Estados Unidos estavam improvisando sua política no Iraque e o estavam fazendo no escuro.

Algumas das políticas mais desastrosas empreendidas pelos EUA foram as decisões de desmantelar as Forças Armadas iraquianas e expulsar do governo ou das novas Forças Armadas qualquer iraquiano que tivesse sido filiado ao partido Baath, que governou na era de Saddam.

Conhecido como “desbaatificação”, esse processo automaticamente marginalizou a maioria dos homens sunitas.

Desempregados e cheios de ressentimento, eles formaram uma insurgência violenta cujos alvos eram americanos e xiitas vistos como aliados dos EUA.

Enquanto corria solta a guerra sectária entre sunitas e xiitas, a população xiita encarava o Irã como seu protetor.

Quando a milícia terrorista Estado Islâmico ganhou controle de território e cidades, a vulnerabilidade dos xiitas alimentou esforços da Guarda Revolucionária e de Soleimani para recrutar e mobilizar milícias xiitas leais ao Islã.

Segundo documentos do Ministério de Inteligência, o Irã continuou a aproveitar as oportunidades que os EUA lhe proporcionou no Iraque.

Por exemplo, o Irã colheu um manancial inesperado de informações secretas americanas quando a presença dos EUA começou a diminuir, após a retirada de suas tropas em 2011.

A CIA tinha posto na rua muitos iraquianos que trabalharam por anos como seus agentes secretos, deixando-os desempregados e à míngua –e com medo de serem mortos, possivelmente pelo Irã, devido a seus vínculos com os EUA.

Sem dinheiro nos bolsos, muitos começaram a oferecer seus serviços a Teerã e não hesitaram em relatar aos iranianos tudo o que sabiam sobre as operações da CIA no Iraque.

Desde o início da Guerra do Iraque, em 2003, o Irã se apresentou como protetor dos xiitas iraquianos, e Soleimani, mais do que qualquer outra figura, vem lançando mão de espionagem e ações militares sigilosas para assegurar que o poder xiita continue em ascensão.

Mas esse esforço teve um custo, a estabilidade, com os sunitas sendo permanentemente postos de escanteio do processo político e buscando proteção junto a outras entidades, como o Estado Islâmico.

Em 2014, um massacre de sunitas na comunidade agrícola de Jurf al-Sakhar foi um exemplo vívido do tipo de atrocidades sectárias cometidas por grupos armados leais à Força Quds, iraniana, que haviam alarmado os EUA na Guerra do Iraque e prejudicado os esforços de reconciliação.

Como deixam claros os relatórios de campo, algumas das preocupações dos EUA foram compartilhadas pelo Ministério da Inteligência iraniano.

Esse fato assinalou divisões internas no Irã em relação às suas políticas para o Iraque, divisões que opunham elementos mais moderados chefiados pelo presidente Hassan Rouhani às facções militantes como a Guarda Revolucionária.

Quando milícias xiitas apoiadas pelo Irã expulsaram os militantes de Jurf al-Sakhar, no final de 2014, na primeira vitória importante contra o Estado Islâmico, Jurf al-Sakhar virou uma cidade fantasma.

Ela não representava mais uma ameaça aos xiitas, mas a vitória iraniana teve um custo muito alto para os habitantes sunitas da cidade.

Dezenas de milhares deles foram deslocados, e um político local, o único membro sunita do conselho provincial, foi encontrado com um buraco de bala na cabeça.

Um telegrama descreve os danos em termos quase bíblicos. “Como resultado dessas operações”, relatou o autor do telegrama, “a área em volta de Jurf al-Sakhar foi purificada de agentes terroristas.

As famílias dos terroristas foram expulsas, a maioria de suas casas foi destruída por forças militares, e as que ainda restam serão destruídas.

As palmeiras foram arrancadas em alguns lugares para serem queimadas e impedir que os terroristas se abriguem entre as árvores. Os animais de criação (vacas e ovelhas) foram espalhados e estão pastando sem seus donos.”

A operação em Jurf al-Sakhar e outras ações sangrentas comandadas por agentes do Irã e dirigidas por Teerã alienaram ainda mais a população sunita iraquiana, segundo um relatório, que destaca: “A destruição de vilarejos e casas, o saqueio de bens e animais de sunitas converterem a doçura dessas vitórias” contra o Estado Islâmico “em amargura”.

Hoje o Irã luta para conservar sua hegemonia no Iraque, como fizeram os americanos após a invasão de 2003.

Enquanto isso, autoridades iraquianas estão cada vez mais preocupadas com a possibilidade de que uma provocação no Iraque lançada por qualquer dos lados possa desencadear uma guerra entre os dois países poderosos que disputam a hegemonia em sua região.

Contra esse pano de fundo geopolítico, os iraquianos –mesmo os sunitas, para os quais o Irã é um inimigo— aprenderam há muito tempo a encarar as investidas dos espiões iranianos com pragmatismo.

“Não apenas ele não acredita no Irã como ele não acredita que o Irã possa ter intenções positivas em relação ao Iraque”, escreveu um funcionário iraniano no final de 2014, falando de um recruta de inteligência iraquiano descrito como baathista que trabalhara para Saddam no passado e mais tarde para a CIA.

“Mas ele é espião profissional, compreende a realidade do Irã e dos xiitas no Iraque e vai colaborar para salvar sua pele.”

Tradução de Clara Allain

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