“A impressão era de que o terremoto tinha sido no dia anterior”, resume a assessora da Pastoral da Criança Internacional, Lady Anne Cardoso, sobre a impressão que teve do Haiti durante sua última visita à região, em 2019.
Ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a instituição brasileira promove ações preventivas de saúde e nutrição e atividades de educação e cidadania para crianças de zero a seis anos. Hoje, a Pastoral acompanha cerca de 5.400 delas no país caribenho.
Cardoso é uma das várias herdeiras do trabalho da médica pediatra e sanitarista Zilda Arns. Fundadora da Pastoral, ela morreu há exatamente dez anos, vítima de um dos terremotos no Haiti, enquanto
participava de um evento católico na capital, Porto Príncipe, e acertava detalhes para o início da atuação do órgão no local.
“Não há substituto [para Zilda], ela fazia muita questão de que a obra continuasse independente dela”, conta o filho, Nelson Arns Neumann, coordenador internacional da Pastoral.
Entre os líderes de comunidades —que coordenam as ações em cada estado brasileiro—, Zilda também havia deixado o recado antes da missão haitiana, como lembra Maria Goretti Krieger, na instituição desde 1991. “Ela dizia: ‘a responsabilidade é tua, mas pode delegar funções a outras pessoas’. A missão continuou porque ela soube semear”, diz.
Desde a morte da precursora, a Pastoral da Criança praticamente dobrou o número de atendimentos no exterior. Ao todo, são 26.200 crianças atualmente acompanhadas em dez países da África, Ásia, América Latina e Caribe.
No Haiti, ressalta Cardoso, há muito o que se fazer. Na missão no ano passado, ela se deparou com problemas básicos, como falta de água e de acesso aos serviços de saúde.
Ainda guarda na memória a cena de uma criança comendo uma sacola plástica. “Eu puxava a sacola e ela puxava de volta porque estava realmente com fome”, relata. Outra mãe contou à assessora que dava água com sal para o filho sentir sede ao invés de fome durante a noite.
A visita ocorreu em meio aos protestos contra o presidente do país, Jovenel Moïse. A situação gerou desabastecimento na região, o que assustou Cardoso, que não sabia se conseguiria voltar para casa. Para chegar ao aeroporto, os voluntários da capital doaram combustível e ajudaram a comitiva a ultrapassar as dezenas de barricadas no caminho.
“Diante daquela realidade, entendi a necessidade da doutora Zilda em ir [ao Haiti]. Aí você entende que a missão é isso. Entende porque ela se empenhou tanto e porque a missão da Pastoral é tão importante para tantas famílias”, resume a líder, que começou na entidade aos 15 anos, acompanhando o trabalho da mãe como voluntária no Pará.
Já no Brasil, a Pastoral teve a atuação enxugada desde 2010. Os voluntários diminuíram pela metade, chegando a cerca de 137.300 no ano passado. O número de crianças cadastradas passou de 1,5 milhão para perto de 836 mil.
Os dados, como aponta Neumann, refletem a nova realidade das famílias do país, que diminuíram a quantidade de filhos, por exemplo, mas também decorrem da sistematização das informações pela própria entidade. “Hoje a gente acompanha os dados de atendimento de cada criança e cada voluntário inclusive via aplicativo de celular. Antes, era tudo oral”, explica.
Os desafios, ele conta, também ficaram mais complexos. Enquanto nos primeiros anos a Pastoral se preocupava principalmente com a desnutrição infantil, hoje a obesidade é um dos problemas a se combater. Doenças consideradas extintas, como sarampo, também retornaram aos manuais de atendimento dos voluntários.
“Tínhamos 19 cartelas de orientação, hoje são mais de 750. Ou seja, o que era fácil, como ensinar o soro caseiro, passou. Hoje, é muito mais complexo trabalhar os vários aspectos de desenvolvimento da criança”, resume Arns.
Para Goretti, outro desafio enfrentado na base é o crescimento do número de famílias nas periferias das cidades. “Também é difícil achar a mãe em casa, porque está no trabalho, a criança está na creche ou na casa de outro”, aponta.
Para os coordenadores, essa nova realidade gerou ainda um maior isolamento das pessoas, o que mudou a abordagem da Pastoral. “Como as famílias estão só dentro de casa, o problema do vizinho, que todo mundo via e se unia para ajudar, acaba sendo uma surpresa”, diz Neumann.
Pastoral nasceu para combater mortalidade infantil no Brasil
A Pastoral da Criança nasceu em 1983, em Florestópolis, norte do Paraná, como projeto-piloto para um difícil desafio da época: combater a mortalidade infantil no Brasil, que chegava a 69,1 mortes de crianças com menos de um ano de vida para cada 1.000 nascidos.
As medidas, idealizadas pela médica Zilda Arns, eram simples: acompanhamento domiciliar de gestantes e filhos nas comunidades mais distantes, distribuição de suplementos alimentares naturais, como
farinha com casca de ovo, e do soro caseiro para combater diarreias.
Em pouco tempo, com a criação de uma rede de voluntários, a atividade da Pastoral —hoje com sede em Curitiba— se expandiu para todos os estados brasileiros, chegando a milhões de famílias atendidas.
Em 2007, Zilda deixou a direção nacional para se dedicar à atuação da entidade em outros países. Reconhecida, recebeu vários títulos, como o Prêmio Woodrow Wilson de Serviços Públicos (2007) e o de Heroína de Saúde Pública das Américas (2002), da Organização Pan-Americana da Saúde. Sua obra foi indicada três vezes ao Nobel da Paz, assim como ela própria, postumamente, em 2011.
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