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Thiago Amparo

Com 'lei do coronavírus', nasce uma ditadura na Hungria

Parlamento deu ao premiê Viktor Orbán plenos poderes legislativos supostamente para combater a Covid-19

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O ano é 2029. Jair Bolsonaro ainda é presidente, após se permitir reeleição perpétua. Seu partido, Aliança pelo Brasil, possui dois terços do Congresso Nacional, podendo mudar a nova Constituição de 2023 –que eles mesmo escreveram— a seu bem querer.

Nessa distopia, rádios são todas controladas por amigos do governo, e 85% dos contratos de comunicação do governo são de empresas amigas do presidente. Acabou a mamata.

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, durante encontro da União Europeia em Bruxelas em fevereiro
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, durante encontro da União Europeia em Bruxelas em fevereiro - Ludovic Marin - 21.fev.20/Reuters

O STF possui maioria governista. Nenhum tanque foi necessário, apenas o passar do tempo e das nomeações. Procurador-geral é o empregado do mês do Palácio do Planalto: tudo arquiva.

Universidades não alinhadas são fechadas, acadêmicos fugiram para outros países e ONGs são monitoradas. Jornais independentes, como esta Folha, não existem mais.

Governo ameaça criar um novo braço do Judiciário, composto por juízes nomeados pelo governo, para lidar com casos de corrupção.

Assustador? Imagine, agora, que neste cenário —real, no caso da Hungria, e fictício (ainda) no caso do Brasil—, o governo passe uma legislação no Congresso para enfrentar uma pandemia que permita a Jair Bolsonaro governar por decreto, sem estipular quando isto acabará. Seria o Brasil ainda uma democracia?

Foi justamente isto que aconteceu na Hungria, no coração da Europa. Nesta segunda (30), o Parlamento húngaro deu ao primeiro-ministro Viktor Orbán plenos poderes legislativos supostamente para combater a Covid-19, pondo por terra qualquer resquício que ainda havia de democracia constitucional no país.

"Em nosso país, os sentimentos são mais intensos e mais decisivos", escrevera em 1942 o escritor húngaro Sandor Marai em “Embers”. De fato.

Perguntei hoje a um amigo húngaro: agora é uma ditadura? Sua resposta resume a situação: sim, no papel; na prática, veremos, há grandes chances.

“Hungria está à beira de uma ditadura”, escreveu a professora de Princeton especialista no país, Kim Lane Scheppele no domingo (29) no blog alemão Verfassungsblog.

No mesmo blog, Renata Uitz, professora da Central European University, cuja sede mudou de Budapeste para Viena por pressão do governo húngaro, definiu a pandemia como um momento que desafia a Constituição.

Uitz lembra que, diante o limite constitucional de 15 dias, renováveis, que a Constituição húngara estabelece para que dure uma emergência, o governo optou por uma outra saída: uma legislação que lhe dá carta branca, sem prazo.

No jornal britânico The Guardian, ao ser questionada sobre quando acabará este estado de emergência, a ministra da Justiça húngara, Judit Varga, disse na sexta-feira (27): “A vida dará a resposta para isso”.

Sua fala preocupa, dado o histórico húngaro em declarar emergências sem fim –a última, ainda em vigor desde 2016, diz respeito à crise migratória.

No site Politico, Varga qualificou as críticas de “reação histérica da Europa”.

O alvo de sua fala é Bruxelas, sede da União Europeia, com quem Orbán constantemente briga, mas ao mesmo tempo recebe recursos volumosos, por vezes desviados, como relatou o jornal The New York Times em novembro de 2019.

Segundo o índice de percepção de corrupção de 2019, a Hungria é o pior país da União Europeia nesse quesito, ao lado da Romênia.

É preciso, para entender a gravidade da questão, verificar o que a lei aprovada estipula. De um lado, ela liberta o primeiro-ministro das amarras do Poder Legislativo.

Permite que o governo “suspenda a aplicação de certas leis, afaste-se do cumprimento de regulamentos e implemente medidas extraordinárias adicionais à legislação por meio de decreto” (Artigo 2(1)).

Referendos e eleições estão cancelados enquanto durar a emergência (Artigo 6). O preâmbulo da lei indica que o governo pode ser suspenso, e seu Artigo 4 prevê que, neste caso, basta que o governo informe o presidente do Parlamento e os líderes partidários das medidas que tomar.

A lei diz “informe”, não “busque aprovação”.

Embora a lei estipule que os poderes devam ser usados para combater a pandemia, não fica claro quem controlará o poder absoluto de Orbán.

Sem Parlamento à vista e sem uma corte constitucional que lhe faça contraponto real, embora ela continue formalmente funcionando (Artigo 5), o fim da democracia é o limite.

De outro lado, e mais preocupante ainda para grupos de direitos humanos na Hungria —como o Comitê Helsinki e União Húngara pelas Liberdades Civis—, é a possibilidade de prisão.

A lei pune com até cinco anos de prisão —uma pena descomunal— quem disser ou espalhar “falsidades” ou “verdades distorcidas perante o grande público para obstruir ou impedir a proteção bem-sucedida” contra a pandemia (Artigo 337(2)).

O perigo é que esta medida está agora encrustada na legislação penal húngara, não é temporária. Consolida-se, portanto, um instrumento de opressão contra dissidentes, de ativistas a jornalistas enquadrados por "fake news”.

Em húngaro, “oi” e “tchau” são a mesma palavra: “Szia”. Não se sabe se esta medida ditatorial nos fará despedir da democracia húngara, já em decadência, ou irá incendiar ainda mais a crescente, mas ainda tímida, oposição ao governo Orbán. O tempo e as instituições dirão. Szia, democracia!

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