Negros enfrentam índices alarmantes de contaminação pelo coronavírus nos EUA

Números são frutos de desigualdades que vêm de longa data, como pobreza e segregação racial

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The New York Times

O coronavírus está contaminando e matando negros nos EUA em índices desproporcionalmente altos, segundo dados divulgados por vários estados e grandes cidades, chamando a atenção para profundas desigualdades de renda, saúde e acesso à assistência médica.

As estatísticas são preliminares, e ainda há muito que não é sabido, porque a maioria das cidades e dos estados não inclui informações sobre raça quando fornece os números de casos confirmados de Covid-19 e de mortes pela doença.

Mas os indícios iniciais obtidos de vários lugares são suficientemente alarmantes para levar políticos a afirmar que é preciso agir imediatamente para prevenir a potencial devastação de comunidades negras.

A tendência preocupante está sendo vista em todo o país, entre pessoas nascidas em décadas diferentes e de profissões variadas.

Paramédico atende paciente no distrito do Brooklyn, em Nova York - Brendan Mcdermid - 7.abr.20/Reuters

Em Charlotte, Carolina do Norte, o juiz Donnie Hoover não conseguiu superar uma tosse seca que começou em março.

No bairro South Side, em Chicago, LaShawn Levi, assistente médica que vai ao trabalho de ônibus todos os dias, recorreu a chá e xarope antitussígeno (“tudo que a vovó ensinou”) para tratar uma dor de cabeça e tosse.

E, em Detroit, Glenn Tolbert, líder sindical dos motoristas de ônibus da cidade, estava tossindo tanto que fez um teste de coronavírus.

“É um momento de chamado à ação para todos nós”, disse a prefeita de Chicago, Lori Lightfoot, que nesta semana divulgou estatísticas sobre a pandemia em sua cidade. Mais de metade das pessoas que receberam diagnóstico de Covid-19 em Chicago e 72% das que morreram são negras, apesar de menos de um terço dos habitantes da cidade serem afro-americanos.

“Esses números são realmente estarrecedores”, disse Lightfoot, a primeira mulher negra a ser eleita prefeita de Chicago. Em entrevista, ela disse ainda que as estatísticas são “uma das coisas mais chocantes que já vi, como prefeita”.

Em Illinois, 43% das pessoas que morreram de Covid-19 e 28% das infectadas são afro-americanas –um grupo que compõe apenas 15% da população desse estado.

Os afro-americanos são responsáveis por um terço dos testes com resultados positivos em Michigan e 40% das mortes nesse estado, mas formam apenas 14% de sua população. No Louisiana, um terço da população é negra, mas 70% das pessoas que morreram de Covid-19 até agora são afro-americanas.

A Carolina do Norte e a Carolina do Sul também relatam uma razão entre negros e brancos contaminados que excede em muito a proporção geral de negros na população.

Os negros estão sobre-representados entre os infectados com o coronavírus na área de Las Vegas e em Connecticut. Em Minnesota, negros foram contaminados com o vírus em razão mais ou menos proporcional à porcentagem que formam na população do estado.

Na terça-feira (7), o presidente Donald Trump reconheceu os sinais crescentes de disparidade e disse que as autoridades federais estão trabalhando para, nos próximos dois ou três dias, oferecer estatísticas que possam ajudar a esclarecer a questão.

“Por que a comunidade afro-americana é tão numerosas vezes mais [afetada] que qualquer outra?”, disse ele numa das entrevistas coletivas diários sobre o coronavírus.

Para muitos especialistas em saúde pública, as disparidades não são difíceis de explicar: são frutos de desigualdades estruturais que vêm de longa data.

Em um momento em que as autoridades defendem que a melhor maneira de evitar o vírus é ficar em casa, os americanos negros formam uma parcela desproporcional da parte da força de trabalho que não tem o luxo de poder trabalhar em casa, disseram os especialistas.

Isso os coloca em alto risco de contrair a doença no trabalho ou quando estão em trânsito.

Levi, a assistente médica de Chicago que adoeceu, acha que pode ter sido exposta ao coronavírus durante o trajeto diário de ônibus entre sua casa e seu trabalho. Ou ela pode ter sido contaminada no hospital onde trabalha, no supermercado ou por meio de alimentos que lhe foram servidos.

“Não sei ao certo”, disse Levi, 45, que tem asma e pressão alta.

Devido às disparidades de longa data, os afro-americanos têm menos chances de ter seguro-saúde e mais chances de ter problemas de saúde preexistentes e de enfrentar discriminação racial que os impede de ter acesso à assistência médica necessária.

Os indicativos iniciais apontam que médicos têm probabilidade menor de encaminhar afro-americanos a exames de coronavírus quando eles vão a uma clínica apresentando sintomas de Covid-19.

Como a doença pode progredir rapidamente, disseram pesquisadores, uma disparidade na prevalência de exames pode levar a resultados consideravelmente piores.

Uma falta de comunicação imediata sobre o perigo da Covid-19, além das mensagens confusas que se seguiram, deixaram um vácuo de informações em algumas comunidades negras, permitindo a circulação de rumores falsos segundo os quais os negros estariam imunes à doença.

Alguns lugares acabaram demorando a tomar medidas para frear a propagação do vírus.

Sharrelle Barber, professora assistente de epidemiologia e bioestatística na Universidade Drexel, disse que os efeitos das políticas públicas discriminatórias contra os negros que começaram na década de 1930 ainda são visíveis hoje.

Muitos vivem em bairros segregados onde faltam oportunidades de trabalho, habitação estável, supermercados com comida saudável etc.

Os altos níveis de segregação racial nos grandes condados urbanos reduzem a expectativa de vida dos residentes afro-americanos, mas têm pouco impacto sobre a expectativa de vida dos brancos, segundo análise dos Rankings de Saúde dos Condados realizada pelo Instituto de Saúde Populacional da Universidade do Wisconsin.

Antes da pandemia, as autoridades haviam calculado que os moradores brancos de Chicago têm expectativa média de vida 8,8 anos mais longa que os negros.

“Estruturalmente falando, essas comunidades são lugares propícios para a propagação da doença”, disse Barber. “Não é um problema biológico. São essas desigualdades estruturais existentes que vão moldar as desigualdades raciais nesta pandemia.”

Um fator que pode tornar o coronavírus mais devastador para os afro-americanos é que eles já sofrem altos níveis de desgaste e esgotamento ligados ao estresse, um processo conhecido como “desagregação”, segundo Arline Geronimus, professora de saúde pública na Universidade do Michigan e estudiosa do conceito.

Fatores de estresse como exposição a toxinas, sono insuficiente e discriminação racial, disse Geronimus, podem causar uma espécie de envelhecimento acelerado.

O coronavírus é mais letal para pessoas com mais de 65 anos.

Geronimus contou que, nesta semana, assistindo a reportagens sobre as disparidades raciais e o coronavírus, ela se viu gritando com a televisão. “Estão dizendo ‘não sabemos o porquê disso’, e eu estou dizendo: ‘É a desagregação!’.”

Especialistas médicos, ativistas comunitários e responsáveis pela formulação de políticas públicas estão pedindo transparência maior em relação aos dados raciais.

As autoridades que vêm divulgando dados raciais o estão fazendo apenas para os casos em que a raça do paciente é conhecida. Não há informações raciais disponíveis em uma grande porcentagem dos casos totais em alguns lugares, às vezes mais de 40% dos casos.

E as autoridades de muitos estados, incluindo os mais fortemente atingidos pela pandemia –Califórnia, Nova Jersey, Nova York e Washington—, não forneceram informações sobre a raça dos pacientes.

Esse fato vem suscitando indignação em alguns setores. Os senadores Elizabeth Warren, de Massachusetts, Kamala Harris, da Califórnia, e Corey Booker, de Nova Jersey, exigiram que a administração Trump colha dados sobre raça e etnia nas fichas sobre exames e tratamentos por coronavírus.

E Jumaane D. Williams, defensor público de Nova York, enviou uma carta ao prefeito Bill de Blasio pedindo que as informações sobre os casos de Covid-19 sejam classificadas por raça e que essas informações sejam levadas a público.

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