Descrição de chapéu Coronavírus

Assim como ebola, Covid pode aumentar evasão escolar feminina, diz diretora da Unesco

Organização também prevê aumento de taxas de gravidez na adolescência devido à pandemia

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São Paulo

"A desigualdade será amplificada." Essa foi a mensagem que a Unesco tentou passar desde o início da crise do novo coronavírus, segundo Stefania Giannini, diretora-geral adjunta de educação da organização.

Quando 185 países haviam fechado seus sistemas educacionais, 1,6 bilhão de estudantes ficaram fora das escolas como conhecemos —fenômeno que potencializou a educação a distância. Hoje, com cem países com escolas fechadas, o número chega a 1 bilhão.

O impacto não será uniforme: se na Europa 14% não têm internet em casa, na África subsaariana essa porcentagem chega a 82%. Mas a desigualdade não será somente geográfica: "A projeção é de mais meninas com risco de abandonar a escola do que meninos", afirma Giannini.

Para projetar esse cenário, ela comparou a atual crise com a do ebola, quando houve crescimento da evasão escolar de meninas nos países atingidos. A evasão trouxe outras consequências. "As taxas de gravidez na adolescência nesses países aumentaram 65%", afirma.

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Stefania Giannini, diretora-geral adjunta para Educação da Unesco - Elodie Gregoire/Divulgação

Como a pandemia vai impactar o aprendizado de crianças e jovens? Nós chegamos ao pico de 1,6 bilhão de estudantes fora da escola por causa da Covid-19. Naquele momento, quase 185 países tinham decidido fechar os seus sistemas educacionais. Claro, essa não é uma decisão fácil, mas a questão era proteger a saúde de crianças, estudantes e professores no momento mais crítico. Agora, ainda há cerca de cem países com escolas fechadas, e quase 1 bilhão de alunos ainda estão fora da escola. Apenas olhando para o mapa, você pode perceber que é uma situação sem precedentes, que nós nunca tivemos na história.

Mas há ainda a dimensão qualitativa da crise. Para resumir, desde o começo a mensagem da Unesco foi: a desigualdade será amplificada. Isso significa que, como os sistemas de educação devem se basear nas aulas online, quanto menos conectividade disponível, maior o risco de os alunos abandonarem a escola. Os mais vulneráveis ficarão para trás. É claro que, quando falamos de qualidade educacional, demora um pouco mais de tempo para medir o impacto da crise, mas temos certeza de que será grande.

Quando a Unesco percebeu que a crise seria severa e quais medidas tomaram? Percebemos logo no começo, quando a China e alguns outros países decidiram fechar escolas e universidades. Eu lembro do primeiro número que publicamos, foi no fim de março. Eu percebi imediatamente, apenas olhando para os relatórios de disseminação da Covid pelo mundo, que aqueles números ainda iriam crescer muito, e foi por isso que decidimos monitorar o processo.

Claro que monitorar não é o suficiente, então decidimos estabelecer imediatamente um coletivo responsável pela ação imediata, que é a Coalizão Global de Educação. Hoje ela conta com cerca de 140 parceiros. Tentamos achar soluções imediatas. A Covid-19 mudou o modelo e a abordagem na educação, assim como em tantos outros setores. Governos e ministros têm que achar um jeito de continuar garantindo a educação. A nossa missão é essa também. Com uma nova maneira de solidariedade internacional, pudemos ajudar os governos de muitas regiões do mundo a encontrar soluções integradas desde o início.

Aulas online, mas também rádio e canais de TV, onde não há conectividade, por exemplo. Nós ajudamos governos a organizar treinamentos voltados para outras mídias para professores. Há ainda a dimensão sobre as lições que estão sendo aprendidas da crise. Estamos começando a repensar o modelo de educação e como podemos tornar os nossos sistemas de educação mais resilientes.

A senhora disse que a desigualdade digital é uma parte importante da crise. Quais regiões ou países estão sofrendo mais impacto? Quando falamos sobre desigualdade digital, é importante dizer que não descobrimos isso agora. Mas agora podemos ver o resultado da desigualdade digital na educação. Eu posso te dar alguns exemplos concretos. Hoje, 48% dos estudantes não têm acesso à internet de casa. Essa é a média: quase metade dos estudantes não tem acesso à internet. Isso significa que, se você não alcançá-los com outros instrumentos, eles serão ainda mais deixados para trás do que eles eram antes da crise.

Mas se você olhar geograficamente para os dados, verá que na África subsaariana cerca de 82% não têm conexão em casa. Na Europa, essa taxa é de cerca de 14%. Podemos pensar em outras regiões, como o sudeste da Ásia, onde há outro tipo de vulnerabilidade. Naquela região, o impacto da crise em mulheres pode ser maior do que em outras regiões.

Na América Latina, se falamos nas áreas rurais, há diversas questões para serem adicionadas. Em uma reunião recente com o ministro da Educação do Peru, falamos sobre proporcionar aulas a essas crianças em suas línguas nativas. Para muitos indígenas da América Latina, uma grande parte da inclusão educacional passa por dar aulas em suas línguas nativas. Se não tivermos professores que possam ensiná-los em suas línguas, podemos perder parte dos estudantes na região.

Para resumir, uma só solução não vai resolver todos os casos. Temos que gerenciar uma crise sem precedentes, um território complexo e desconhecido para nós. O que estamos tentando fazer na Unesco é colocar à disposição um sistema de parceiros e serviços. Não é por acaso que convocamos a nossa primeira reunião ministerial em 10 de março. Quase oito países estavam na sala (virtual, é claro). É um novo tipo de cooperação internacional e de abordagens multilaterais para esses novos desafios.

Dizem que o chamado “novo normal” antecipou o estilo de vida que teríamos no futuro. A senhora concorda que essa situação antecipou o futuro na educação? Eu concordo que com uma mudança tão disruptiva, inesperada, o que muitas vezes falamos que é o futuro da educação de repente se torna o presente. Eu posso citar o ministro egípcio. Durante a primeira reunião que convocamos ele disse exatamente isso. Que nós tínhamos aprendido mais naquelas três semanas do que nos últimos dez anos sobre aprendizado digital e soluções inovadoras.

Mas isso não é inesperado. Quando temos uma mudança disruptiva somos obrigados a achar soluções e a destravar a nossa criatividade. Vemos também uma enorme necessidade de recursos, por isso defendemos que a educação não pode ser deixada para trás durante a crise. O país que investir em educação será uma grande parte da solução. Mas, ao mesmo tempo, vemos também muita inovação e criatividade. E este é o lado positivo da crise.

A ONU tem o programa Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que traça 17 metas para o mundo com prazo para 2030. Uma delas é garantir igualdade na educação para todos. Vocês têm novos prazos agora? Nós tivemos que adaptar, mas tenho que dizer que tudo o que falei até agora sobre inovação e criatividade tenta preencher a lacuna da desigualdade digital. Será mais fácil, de alguma forma, com todo esse esforço que temos concentrado. Onde há uma crise, há uma oportunidade. O que estamos tentando fazer com essa oportunidade é acelerar.

Mas há uma pré-condição para conseguir isso. A pré-condição é que líderes e políticos entendam que a educação, junto com a saúde, é o pilar de uma sociedade melhor e mais inclusiva. Nós não teremos igualdade depois da Covid-19 sem uma sólida renovação nos sistemas educacionais, assim como nos sistemas de saúde. Há dois sistemas nesse processo, e nosso principal propósito agora é fazer com que os políticos do mais alto nível compreendam essa mensagem.

Como a escola impacta a igualdade de gênero? Eu acho que fui uma das primeiras pessoas na Unesco a soar o alarme sobre esse tópico. E não porque eu tenho uma bola de cristal no meu escritório, mas simplesmente porque nós começamos a comparar a crise com outra recente, a do ebola. Naquele caso, três países foram os mais impactados na região do oeste da África, e nós tivemos o crescimento da evasão escolar de meninas no nível secundário, o que foi muito dramático.

Nós estivemos trabalhando sobre os dados, e a projeção é de mais meninas com risco de abandonar a escola, agora falando genericamente, do que meninos. Precisamos trabalhar não apenas sugerindo políticas a serem implementadas pelos governos, mas também com as famílias e comunidades, para construir um papel mais forte da educação para o futuro das crianças e meninas.

Em grandes crises como a que estamos vivendo, casamentos infantis e gravidez precoce aumentam? Sim, exatamente. É o que observamos nos países que sofreram com ebola. As taxas de gravidez na adolescência nesses países aumentaram 65%. Não podemos projetar os mesmos números, mas há uma expectativa de que aconteça o mesmo processo.

Desde o início do governo Bolsonaro já tivemos três ministros da Educação e temos um grande problema de desigualdade em educação e de gênero no país. A Unesco está olhando para o Brasil? O que vocês veem? O Brasil é um país muito grande. Estamos cooperando muito com o governo, em diferentes níveis. A educação a distância, em um país tão grande, com tantas zonas rurais, vai ter um papel muito importante. Estamos trabalhando em um grande projeto de treinamento de professores. Acho que temos sorte no Brasil, porque temos um escritório forte e cadeiras da Unesco em institutos focados na aprendizagem digital da educação.

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