Ao forçar redução de aluguéis, Berlim vive queda na oferta de imóveis e confusão jurídica

Proprietários questionam mudança na Justiça, e moradores podem ter de devolver dinheiro

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São Paulo

No final de novembro, Berlim deu mais um passo na política para baixar os aluguéis da cidade: depois de congelar os valores, no início do ano, a prefeitura da capital alemã determinou que os donos reduzam o preço em contratos considerados caros demais.

A medida, válida desde 23 de novembro, determinou limites para a cobrança de aluguel, definidos de acordo com localização, ano de construção e condição de cada imóvel. Proprietários que cobram além desses limites foram obrigados a baixar o preço imediatamente.

A medida, no entanto, tem gerado problemas: de um lado, inquilinos estão inseguros sobre a aplicação da redução, pois o tema foi parar na Justiça. De outro, o número de imóveis no mercado caiu antes mesmo de a regra entrar em vigor, fruto do congelamento dos preços e das discussões sobre a medida mais recente.

Grafites com mensagens contra despejos na região de Prenzlauer Berg, em Berlim - Lena Mucha - 30.nov.2019/The New York Times

Segundo dados da consultoria Gutmann, o total de locais ofertados para alugar caiu 77% na comparação entre outubro de 2020 com o mesmo mês de 2019. A consultoria fez o levantamento a partir de anúncios nos principais sites e jornais.

No mesmo período, o valor médio dos aluguéis para contratos novos subiu de 11,10 euros para 12 euros por m² (alta de 8,1%), uma vez que o congelamento não afeta imóveis construídos a partir de 2014.

Além das mudanças de regras, o mercado foi afetado pela pandemia de Covid-19. Com as restrições de viagens internacionais, muitos estudantes e trabalhadores estrangeiros que se mudariam para Berlim neste ano tiveram de adiar ou cancelar os planos, o que tirou parte da pressão sobre os preços.

Quando a situação normalizar, porém, uma grande crise de falta de imóveis para locação poderá emergir.

A chegada de estrangeiros foi justamente uma das principais razões para a alta de preços das moradias na capital alemã. Segundo a BMV (Associação dos Inquilinos de Berlim), o valor médio dos aluguéis subiu 30% de 2014 a 2019. Viver em um apartamento de 60 m² custa cerca de 850 euros mensais (R$ 5.400), o que consome, em geral, um terço da renda média familiar na cidade.

Estima-se que 85% dos habitantes de Berlim vivam em imóveis alugados.

Para a consultoria F+B, os proprietários poderão perder 250 milhões de euros por ano com a medida. Em média, serão 40 euros (R$ 253) a menos por mês por imóvel alugado. A redução dos valores, por outro lado, deve afetar cerca de 365 mil contratos de aluguel, segundo a BMV.

Os donos buscam maneiras de driblar a regra. Levantamento da Conny, entidade de defesa do consumidor, apontou que 3 de cada 4 locatários com direito à redução não foram avisados sobre a mudança.

"Muitos estrangeiros aqui não falam alemão fluente e não estão a par da lei, então há muitos locadores fingindo que nada aconteceu", diz Bruno Santiago, 31, estudante brasileiro que mora em Berlim.

Como o governo terá dificuldade para fiscalizar a aplicação do desconto em milhares de contratos, há a orientação para que moradores confiram em um site se têm direito ao abatimento. E, caso o dono recuse o desconto, eles devem entrar com ações judiciais para reaver o valor pago a mais de forma indevida.

Entidades de proprietários também foram à Justiça para questionar a medida, e o caso chegou à Corte Constitucional alemã, que decidirá se a prefeitura de Berlim tem direito de intervir dessa maneira no mercado. A ação, no entanto, só deverá ser julgada no ano que vem.

Assim, muitos inquilinos chegam ao período de Natal com um dinheiro inesperado, mas têm receio de gastá-lo, conta Santiago. "Muitos donos diminuíram o aluguel, mas pediram para as pessoas guardem o dinheiro, porque a situação ainda pode mudar", comenta. "E, se mudar, terão de devolver o desconto."

Há também anúncios de imóveis com dois valores: um do aluguel com a redução, e outro "cheio", que valerá caso o abatimento seja suspenso na Justiça. A consultoria Guthmann estima que faltem cerca de 200 mil casas em Berlim para suprir toda a demanda da cidade. Com as limitações, há o risco de que menos empresas queiram erguer moradias novas, e o problema se agrave.

"Quando o governo intervém nos aluguéis, afeta também os mercados de venda de imóveis e da construção civil, que absorve muita mão de obra e tem papel importante ao gerar empregos na recuperação pós-pandemia", avalia Agostinho Pascalicchio, professor de economia do Mackenzie.

Pascalicchio aponta que o aumento do uso de sites e aplicativos para aproximar moradores e inquilinos pode estimular a informalidade, cenário que impõe mais dificuldades ao governo para mediar as relações.

O prefeito de Berlim, Michael Muller, argumentou durante os debates para a aprovação da medida no Legislativo municipal, no fim de 2019, que "um apartamento não é um investimento como ações ou ouro". "A diferença é que as pessoas vivem em apartamentos. Eles são um bem social, que precisa ser regulado."

Muller, do partido SPD (social-democrata), está no cargo desde 2014. Além do congelamento de preços dos aluguéis e dos descontos, ele investiu na compra de edifícios privados, para que a prefeitura os alugasse aos berlinenses a preços mais justos.

Suas medidas geraram muito debate. Membros da oposição, que inclui a CDU, partido da chanceler Angela Merkel, acusaram o prefeito de prejudicar a cidade, pois as propostas afastam investidores. Alguns representantes da esquerda, por sua vez, criticaram-no por não tomar ações mais duras, como expropriar apartamentos de empresas de locação, muito atuantes na cidade.

Claudia Acosta, pesquisadora de direito urbanístico no Cepesp-FGV, lembra que intervenções estatais no mercado de moradia são feitas desde o Império Romano. E que Berlim dá um passo mais radical não só ao estabelecer limites de aumento, mas por forçar a redução em contratos vigentes.

"Com a medida, o governo tirou dos proprietários um valor real concreto, já pactuado com os inquilinos e recebido mensalmente, e não uma expectativa de aumento futuro, um dinheiro que ainda não existe. Isso gera um debate mais intenso, sobre quanto o Estado pode intervir em relações que envolvem propriedades privadas", diz Acosta. "Em uma situação com essa, quem já era inquilino se deu bem. Mas quem for chegar e buscar uma casa de agora em diante pode ter mais problemas", analisa.

A pesquisadora aponta que, após uma intervenção como essa, a tendência é que os donos passem a preferir a venda dos imóveis em vez do aluguel, o que faz reduzir a oferta. Outra implicação da medida é que proprietários passem a investir menos em reforma e manutenção, deteriorando a condição de casas e apartamentos com o passar dos anos, caso as restrições sejam mantidas por muito tempo.

O congelamento de preços em Berlim valerá até 2025.

"A Europa está numa discussão séria sobre crise habitacional. Até um tempo atrás, com um emprego médio era possível pagar o aluguel, mas agora não se consegue mais acompanhar a alta de preços", avalia ela. "Vivemos isso na América Latina há décadas, e a situação de muita gente não ter condição de pagar por moradia acabou se tornando algo comum. Mas, para os europeus, isso é algo novo."

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