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Proteção dos refugiados na América do Sul: lições para a Europa

Migrantes irregulares têm acesso aos direitos básicos e à residência legal em países sul-americanos

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Leiza Brumat

É pesquisadora do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). Doutora em ciências sociais por FLACSO-Argentina. Suas principais áreas de interesse são as políticas de integração regional e migração.

Luisa Feline Freier

Professora do Departamento Acadêmico de Ciências Sociais e Políticas da Universidad del Pacífico do Peru e pesquisadora da CIUP. Doutora em ciência política pela London School of Economics and Political Science, LSE (Inglaterra).

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Os países sul-americanos têm recebido muito mais venezuelanos do que o número de solicitantes de asilo que a maioria dos países europeus receberam durante a crise dos refugiados do Mediterrâneo.

Enquanto a UE, com uma população total de cerca de 450 milhões de pessoas, recebeu 1,5 milhão de sírios no auge da crise, os países sul-americanos, com uma população semelhante (430 milhões), receberam mais de 4,5 milhões de venezuelanos nos últimos quatro anos.

Imigrantes na ponte entre o Brasil e o Peru; eles conseguiram entrar no Acre após decisão da Justiça
Imigrantes venezuelanos na ponte entre o Brasil e o Peru - Divulgação/Caritas e DPU

Embora o êxodo venezuelano tenha reduzido devido à pandemia, nunca cessou e os especialistas esperam que o êxodo aumente significativamente quando as fronteiras da região forem totalmente reabertas.

A União Europeia (UE) lançou recentemente o Pacto sobre a Migração e o Asilo, que faz uma distinção clara entre "refugiados" e "migrantes irregulares", o que significa que há alguns que merecem proteção e outros que devem ser detidos e devolvidos.

Sugerimos que a América do Sul apresenta um caso interessante –e contrastante– para a mobilidade e a proteção dos refugiados. O regime sul-americano faz a distinção entre entrada e permanência irregulares, e solicitantes de asilo e refugiados, quase irrelevante na prática, já que os migrantes irregulares têm acesso aos direitos básicos e à residência legal, em muitos casos.

O regime formal de proteção dos refugiados da América Latina

A Declaração de Cartagena é o instrumento emblemático da liberalização da gestão do asilo na América Latina. A definição de refugiado de Cartagena amplia a proteção a "pessoas que fugiram do seu país porque as suas vidas, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordem pública".

Até o momento, a maioria dos países sul-americanos têm incluído em sua legislação nacional a definição ampliada de refugiado da Declaração de Cartagena, junto com um enfoque da proteção dos refugiados centrado nos direitos humanos.

Em geral, as leis da América Latina são muito progressistas. Na América do Sul, o Brasil e a Argentina oferecem casos interessantes, já que as constituições de ambos os países incluem o direito de asilo.

As leis dos refugiados de ambos os países estendem os mesmos direitos dos nacionais aos refugiados, exceto o direito ao voto nas eleições nacionais. Também concedem tanto aos refugiados quanto aos solicitantes de asilo o direito de trabalhar, exigem uma rápida acreditação de diplomas estrangeiros, e oferecem pleno acesso aos cuidados de saúde pública e educação.

Proteção de fato através do regime de mobilidade regional

Existem atualmente duas questões polêmicas em relação à situação jurídica dos venezuelanos na região. A primeira é a questão de se os venezuelanos devem ser considerados migrantes ou refugiados, já que não há consenso regional sobre se deve ou não ampliar a condição de refugiado para eles com base na definição de Cartagena.

Até agora, apenas o Brasil e o México têm aplicado a definição de refugiado de Cartagena a um número significativo de solicitantes de asilo venezuelanos. A maioria dos países sul-americanos decidiram adotar diversas medidas ad hoc, tais como vistos temporários e cartões de mobilidade fronteiriça.

A segunda questão é que a Venezuela foi o único país que não ratificou o Acordo de Residência (RAM) do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) de 2002, um marco na governança migratória regional na América do Sul, que poderia dar uma condição migratório legal à maioria dos venezuelanos que vivem em outros países da América do Sul.

O RAM cria um regime de residência livre ao outorgar um direito de residência até dois anos, após o qual os migrantes podem solicitar a residência permanente. Garante um vasto conjunto de direitos que incluem um tratamento igual ao dos nacionais, a reunificação familiar e direitos especiais para as crianças nascidas em um dos Estados-membros (incluindo o acesso à educação).

No RAM, a situação regular frente à irregular dos migrantes não determina o acesso dos migrantes aos direitos e à regularização. Isto constitui uma diferença fundamental com o Pacto da União Europeia, que se centra no "controlo" e no "regresso" dos migrantes em situação irregular. No entanto, apenas a Argentina e o Uruguai aplicam (unilateralmente) o RAM aos venezuelanos.

Conclusão: Lições do Sul

A América do Sul apresenta um caso interessante que poderia oferecer algumas lições para outras regiões do mundo. O regime da América do Sul funciona de maneiras diferentes, e por vezes contraditórias.

Por um lado, a legislação é excepcionalmente progressiva, incluindo a definição ampliada de refugiados de Cartagena e a integração socioeconômica de refugiados e migrantes. Por exemplo, em toda a região, os venezuelanos podem trabalhar assim que chegam à maioria dos países de acolhimento, independentemente de sua condição de migrantes ou refugiados.

Por outro lado, também há espaço para a aprendizagem, já vez que a legislação oficial sobre refugiados coexiste com diferentes práticas políticas, algumas das quais são restritivas e violam as obrigações internacionais.

Por exemplo, países como o Equador e o Peru têm limitado a entrada legal por razões políticas. Em qualquer dos casos, existe uma consciência regional de que as fronteiras são porosas e que não é possível impedir a migração das pessoas.

É verdade que as semelhanças culturais, incluindo diferenças linguísticas e religiosas praticamente inexistentes, entre os venezuelanos e os seus vizinhos regionais facilitam a sua integração, enquanto as diferenças entre os migrantes do Oriente Médio e da Europa setentrional e os europeus são mais amplas.

No entanto, a lógica do regime sul-americano é diferente, já que considera que a solução à migração irregular não é a deportação, mas a regularização. Os migrantes em situação regular são mais fáceis de integrar na sociedade e na economia formal. A regularização é especialmente importante em tempos de Covid-19, quando o acesso à atenção sanitária é crucial.

Embora existam diferenças importantes entre os países e uma crescente resistência à regularização devido à grande escala da deslocação de venezuelanos em alguns países, em geral isto se opõe à lógica de bloqueio da chegada de migrantes que prevalece na UE.

*Uma versão ampliada em inglês foi publicada no fórum do projeto ASILE (Global Asylum Governance and the European Union's Role).

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