Descrição de chapéu refugiados África

Setor de turismo pressiona Espanha a conter onda de imigração africana nas Canárias

Ilhas já receberam 20 mil imigrantes neste ano, número dez vezes maior do que em 2019

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São Paulo

Dois grupos têm se cruzado nos corredores dos hotéis das Ilhas Canárias: turistas europeus de férias, em busca de descanso à beira-mar, e imigrantes africanos recém-chegados, depois de longas e precárias travessias do Atlântico.

Os africanos estão sendo colocados ali pelo governo da Espanha, que sofre críticas pela forma como lida com a onda de imigração em direção às Canárias.

Território espanhol, esse arquipélago a cerca de 100 km da costa da África registrou recorde no número de imigrantes neste ano. Foram 20 mil pessoas chegando irregularmente por mar nos 11 primeiros meses de 2020, sendo 8.157 só em novembro. O total deste ano é dez vezes maior do que o de 2019.

Imigrantes fazem fila para receber atendimento nas Ilhas Canárias - Desiree Martin - 20.nov.20/AFP

Alguns fatos novos explicam a alta. Outras rotas da África para a Europa via Mediterrâneo tiveram fiscalização reforçada nos últimos anos. E a pandemia debilitou ainda mais a economia de países como Senegal, Mali e Marrocos. Assim, entre seguir em uma vida pobre e tentar a sorte na Europa, mais jovens africanos resolveram se arriscar.

O pescador Djiby Dieng, 21, tentou. Ele contou, à agência de notícias AFP, que saiu de casa em Mbour, no Senegal, em 18 de outubro, com uma pequena mochila nas costas, sem avisar a mãe aonde ia.

Às 10h daquele domingo, encontrou-se com um pequeno grupo. Antes de prosseguir, os atravessadores confirmaram que todos haviam pago o combinado. A travessia geralmente custa entre 150 mil e 300 mil francos CFA (R$ 1.400 a R$ 2.800) por pessoa, valor que equivale a mais de dois meses de renda de um pescador. Em alguns casos, familiares e amigos fazem uma "vaquinha" para juntar o dinheiro.

Dieng não pagou, pois fez um trato para ser um dos pilotos. Os viajantes deixaram a costa em pequenos barcos, que passam desapercebidos entre as dezenas de embarcações de pesca.

Em seguida, em alto-mar, passaram para uma canoa grande, de cerca de 20 metros, em que fariam a travessia. A viagem pode durar até dez dias, dependendo do clima, da habilidade dos pilotos e da qualidade do barco. São cerca de 1.500 km do Senegal até as Canárias, distância comparável a ir do litoral de São Paulo até Salvador, na Bahia.

"Éramos 131. Havia gente de todas as idades, jovens, velhos. Mas ficamos sem água e comida. Tínhamos umas 15 pessoas desidratadas. Por isso, perto da costa do Marrocos, decidimos parar", conta Dieng.

Problemas na travessia são comuns. O também senegalês Saliou Diouf, 22, disse que o motor do barco em que viajava quebrou no segundo dia. O equipamento pegou fogo durante uma tentativa de conserto, e os passageiros pularam na água. Muitos não sabiam nadar. Dos cerca de 200 viajantes, só 50 foram resgatados por outros barcos, estima Diouf.

Há relatos também de barcos improvisados que afundaram ao tentar fugir de abordagens de patrulhas em alto-mar, aposta da Espanha para tentar frear o fluxo de imigrantes. O total de mortes na travessia passa de 500 neste ano, nas contas da OIM (Organização Internacional para as Migrações, parte da ONU). O número é o dobro do de 2019.

Para pescadores como Dieng, é comum navegar em mar aberto por dias, em busca de peixes. A pesca é uma atividade comum na costa do Senegal e que gera cerca de 600 mil empregos diretos e indiretos, mas há muitas queixas de que as redes têm vindo cada vez mais vazias.

A renovação recente de um acordo que autoriza barcos da Espanha, de Portugal e da França a pescar atum e merluza em águas senegalesas ajudou a estimular essa onda migratória. Foi um sinal para os africanos de que haverá ainda menos peixes disponíveis.

Além disso, a pandemia levou os mercados populares a operar em turnos reduzidos, o que complica a venda de produtos perecíveis. Comentários publicados em redes sociais também funcionam como estímulo. Amigos que conseguiram ir para a Europa postam fotos de sua nova vida, que são vistas por conhecidos que seguem em condições precárias.

"Os jovens ouvem todos os dias comentários como 'tal pessoa [que foi] construiu uma casa para os pais"", disse Néné Fatoumata Tall, ministra da Juventude do Senegal. O governo promete estimular a criação de empregos, mas a falta de trabalho segue presente.

Depois de dias no mar, quem consegue chegar às Canárias entra na fila para ser fichado pela polícia e fazer um teste de Covid-19. A espera acontece em tendas montadas em um cais. As condições de abrigo foram criticadas por entidades humanitárias.

"Eu vi uma fila de tendas lotadas onde as pessoas são mantidas por dias, dormindo no chão, com 30 ou 40 pessoas usando um mesmo banheiro químico", disse Judith Sunderland, diretora da entidade Human Rights Watch na Europa. "Mesmo considerando as melhores intenções de quem trabalha lá, aquelas condições não respeitam a dignidade das pessoas."

Jornalistas que tentaram se aproximar do local para registrar a situação foram barrados. No dia 2 de dezembro, o premiado fotógrafo espanhol Javier Bauluz foi empurrado por policiais espanhóis e forçado a se afastar do cais onde estavam os imigrantes. O governo diz que o veto à imprensa nos locais busca preservar a privacidade dos estrangeiros e promete melhorar as condições no atendimento.

Depois da triagem, os recém-chegados são levados a acampamentos ou hotéis, onde devem cumprir quarentena e aguardar a autorização de entrada ou a deportação. Cerca de 17 hotéis, que receberam 1.500 estrangeiros, estão sendo usados para abrigar imigrantes, com as estadias pagas pelo governo.

Enquanto estão em quarentena, os imigrantes não podem usar a piscina dos locais nem outras áreas comuns. Sem ter o que fazer, ficam nas sacadas, conversando à distância com vizinhos de outros quartos.

Pelas ruas, grupos de jovens imigrantes passam o tempo andando nas praias e nos parques. Com a falta de turistas, muitos estabelecimentos estão fechados.

Os empresários do turismo criticam a situação. Colocar os imigrantes em hotéis foi uma forma de ajudar os estabelecimentos a se manterem abertos em um momento de viagens suspensas devido à pandemia, mas agora o setor reclama que a presença dos africanos está afastando outros clientes.

"Tenho um freguês que reclamará na agência de viagens. Não lhe disseram que aqui estava cheio de imigrantes. Ele foi uma vez à praia e havia grupos de 15 a 20 pessoas sem máscara. Não saiu mais [do hotel] e decidiu voltar antes, comentou Miguel González, dono do bar Parada, no sul da ilha de Gran Canária, à AFP.

"Não estamos contra a migração, mas [eles] precisam de lugares específicos. Se uma pessoa gasta dinheiro para vir, não quer compartilhar hotel com um imigrante", diz Carmelo Suarez, porta-voz de um grupo que busca defender o turismo na região.

No fim de novembro, o governo espanhol prometeu retomar a deportação de imigrantes para a África, paralisada por conta da Covid-19. Serão enviados de volta os que estiverem em situação irregular e que não tenham direito a proteções legais internacionais, como asilo político. E também prometeu reforçar a fiscalização marítima.

Os africanos querem ficar nas Canárias ou encontrar um meio de ir a outras partes da Espanha e da Europa. Em muitos casos, possuem conhecidos no continente, que poderão ajudá-los a começar uma nova vida.

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