Em recado a Xi e Biden, Merkel diz que mundo não pode ser forçado a escolher entre dois lados

Durante palestra em Davos, chanceler cobrou mais transparência da China e pediu apoio dos EUA para tributar as big techs

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Bruxelas

A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, afirmou que o mundo não pode se ver forçado a escolher entre dois grandes blocos, com os chineses de um lado e os americanos do outro. "Sou contra dizer 'aqui estão os EUA e ali a China', e os países precisam se agrupar em torno de um ou de outro", afirmou ela, nesta terça (26), em palestra no Fórum Econômico Mundial —que, em 2021, acontece online.

Ao responder a uma pergunta sobre a defesa do multilateralismo feita na véspera pelo líder chinês Xi Jinping, ela afirmou que concordava com essa visão. "Mas há uma questão em que não estamos totalmente de acordo: a de como lidar com diferentes modelos sociais. Quando começa e onde termina a interferência? Quando você defende valores elementares que são indivisíveis?", questionou.

Na resposta à pergunta, feita pelo fundador e presidente-executivo do Fórum, Klaus Schwab, ela disse que é fundamental definir quais são os limites até os quais é possível respeitar diferentes sistemas econômicos e sociais. "A China se comprometeu com tratados internacionais, e precisamos resolver de uma vez por todas as diferenças de interpretação", afirmou.

Em vários outros pontos de sua fala inicial, Merkel se equilibrou entre interesses chineses e americanos. Ela cobrou mais transparência sobre práticas como subsídios estatais, numa clara referência a Pequim. "Precisamos saber até que ponto o comércio ainda está sendo feito sob regras globais ou se está sendo favorecido por práticas não aceitáveis."

A premiê, de paletó bordô, em frente a bandeiras da Alemanha e da União Europeia
A premiê alemã, Angela Merkel, se prepara para participar, por videoconferência, do Fórum Econômico Mundial - Sean Gallup/AFP

Essa é uma das principais críticas dos Estados Unidos justamente a uma entidade multilateral, a OMC (Organização Mundial do Comércio). Para as duas gestões anteriores do governo americano, e para vários especialistas em comércio internacional, a organização precisa ser reformada para ser capaz de lidar com o sistema da China, que, desde que aderiu à OMC, tornou-se uma potência comercial.

Sem se dirigir diretamente aos EUA, Merkel alertou que é preciso destravar as atividades do órgão —que está sem diretor-geral e com seu Órgão de Apelação paralisado, por causa de bloqueios americanos, intensificados no governo de Donald Trump.

A chanceler também usou sua palestra para pedir ao novo presidente americano, Joe Biden, que apoie a tributação de gigantes de tecnologia desenvolvida pela OCDE (grupo de 38 países entre os mais ricos do mundo) e que combata os monopólios.

As tentativas de tributar as grandes companhias americanas e limitar seu poder de mercado, feitas pela União Europeia e por países do bloco, foram uma das principais causas de atrito com o governo do ex-presidente Donald Trump.

A França chegou a aprovar um imposto sobre as chamadas big techs, mas recuou após Trump ameaçar impor altas tarifas a produtos de luxo franceses.

Sentada na frente de bandeiras da Alemanha e da União Europeia, Merkel disse esperar que a nova administração americana apoie “a importância de leis internacionais de competição, para prevenir a formação de monopólios globais”.

Ainda equilibrando-se entre os "dois blocos", a premiê alemã defendeu o acordo de investimento firmado entre a União Europeia e a China, no penúltimo dia de seu mandato como presidente rotativa do Conselho da UE.

O texto era uma das prioridades da chanceler alemã, e, para assiná-lo, ela aproveitou a janela de transição na Presidência americana, em que Biden já havia sido eleito, mas ainda não empossado.

O acordo contrariou os americanos e, segundo diplomatas, teria erguido uma barreira justamente para a participação dos EUA nas políticas de tributação digital e privacidade defendidas pelos europeus.

A alemã ressaltou que o acordo firmado com a China pode trazer mais transparência sobre os subsídios estatais, mais previsibilidade no acesso a tecnologias e o cumprimento de regras trabalhistas, todos temas importantes na política de Biden em relação ao gigante asiático.

Merkel defendeu na palestra um modelo de “mercado social”: “É preciso achar o equilíbrio correto entre ações dos governos e os direitos individuais. Precisamos ser capazes de parar a concentração quando ela está criando empresas muito poderosas, e pensar de forma global, para além de nosso mesmo país”.

Segundo a chanceler, isso precisa ser feito por meio de regulação estatal, “porque nenhuma empresa fará isso sozinha”, mas sem deixar que o Estado cresça muito a ponto de abafar a inovação e a iniciativa particular.

3 lições da pandemia

Na avaliação de Merkel, a pandemia trouxe três grandes lições. A primeira foi deixar claro como o mundo está conectado e interdependente, o que mostra que tentar se isolar dentro de suas próprias fronteiras não é uma boa solução. A segunda foi evidenciar a vulnerabilidade do ser humano em relação à natureza e a urgência de adotar medidas que protejam o clima e a biodiversidade.

Por fim, a chanceler disse que desastres como uma pandemia servem para apontar gargalos e fraquezas que precisam ser resolvidas. No caso da Alemanha, dois dos principais calcanhares de Aquiles apontados por ela foram a burocracia, que atrasou muitos processos, e a falta de um sistema preventivo de saúde. “Temos um bom serviço de saúde em nível do indivíduo, mas precisamos reforçá-lo em nível de comunidade”, disse ela.

Com a Alemanha sob críticas de países vizinhos por usar seu poder econômico para garantir mais acesso a imunizantes e do público interno por demorar muito a administrar as injeções, Merkel defendeu uma distribuição global mais justa das vacinas, que também chegue aos países mais pobres.

“A questão de quem receberá primeiro as vacinas vai criar uma nova narrativa. Se os mais necessitados receberem essa ajuda tão urgente, eles vão lembrar por muito mais tempo do que se fosse uma ajuda em tempos melhores”, afirmou Merkel.

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