Extremismo revela pavor que brancos americanos têm de perder poder, diz cientista político

Peter Trubowitz, especalista em EUA da London School of Economics, expressa preocupação com período até posse

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Bruxelas

O extremismo que levou à invasão do Congresso americano nesta quarta (6) tem raízes no pavor dos brancos americanos de perder poder no país. O mesmo fenômeno explica os mais de 74 milhões de votos dados a Donald Trump nas eleições do ano passado, afirma o diretor do Centro de Estudos sobre os Estados Unidos (US Centre) da London School of Economics (LSE), Peter Trubowitz.

“A demografia dos Estados Unidos está mudando, muitos americanos brancos não estão felizes com isso, e seus representantes no Congresso estão refletindo isso. Esses argumentos sobre fraude eleitoral são uma tentativa de deslegitimar os votos principalmente dos afro-americanos, mas também, em alguns casos, dos latinos”, afirma o professor americano, que ensina relações internacionais na LSE.

Ele se diz preocupado com o que ainda pode acontecer até o dia 20, data da posse do eleito Joe Biden, e afirma acreditar que Trump pode causar problemas mesmo depois de deixar a Casa Branca. “Ele ativou e impulsionou forças extremistas nos Estados Unidos, que agora podem se mover por conta própria.”

Para cicatrizar o país, Biden terá que aplacar a insegurança econômica, reconquistar a classe média trabalhadora e achar terrenos comuns com os republicanos, principalmente em políticas industriais e de infra-estrutura, e enfrentar a perda de empregos para a China e para a globalização.

“Não se trata de colocar pontes levadiças ou construir muros. Mas a política externa precisa pagar dividendos para o americano médio.”

*

O sr. se surpreendeu com o que houve em Washington? Sim e não. Eu não poderia ter previsto a forma como aconteceu, mas a possibilidade de que Trump pudesse fomentar o ataque de uma turba está clara há meses. Estava claro que Trump não deixaria a Casa Branca facilmente. Continuo preocupado com os próximos 13 dias.

Teme que algo semelhante volte a acontecer? Este é um momento em que as pessoas não deveriam baixar a guarda. Especialmente os republicanos. É o momento de condenar o ataque ao Capitólio, é importante passar uma mensagem a seus próprios constituintes e internacionalmente.

Os republicanos estão reagindo à altura? Varia muito. Houve alguns como Mike Gallagher, Mitt Romney, Ben Sasse ou Mitch McConnell —este ainda que tarde, mas antes tarde do que nunca— que se levantaram e condenaram claramente não apenas a insurreição em Washington, mas também a tentativa de parte dos republicanos de bloquear a certificação de Joe Biden. Precisamos ver muito mais dos republicanos nos próximos dias, ou mais ainda, nas próximas 24 a 48 horas.

O escritório de imprensa de Trump publicou no Twitter nesta manhã que a transição seria pacífica, mas o presidente é alguém em quem não se pode confiar. Ele provocou tanta divisão, semeou tanta discórdia, seu comportamento é tão destrutivo. Muitos de nós sabemos disso há muito tempo, mas, como dizemos nos EUA, agora as galinhas voltaram para o poleiro [expressão que significa que os erros do passado em algum momento cobrarão seu preço].

Homem de camisa preta segura folhas de papel e olha para o lado, com a haste dos óculos nos lábios
Peter Trubowitz, professor de relações internacionais da LSE, em evento da universidade - LSE in Pictures

O sr. mencionou preocupação com os próximos 13 dias. Acredita que, com Trump fora da Casa Branca, o risco de turbulência se reduz? Quando ele sair da Casa Branca, perderá o púlpito. Ainda terá uma conta no Twitter, mas não terá exatamente a mesma força. Haverá uma chance para o país começar a cicatrizar. Tendo dito isso, é evidente que mesmo fora da Casa Branca Trump pode causar problemas, e ele ativou e impulsionou forças extremistas nos EUA, que agora podem se mover por conta própria. Este será um problema com que Biden terá que lidar: como reunir o país e resgatá-lo desse pesadelo.

O sr. diz que Trump habilitou um extremismo que já estava lá, mas quanto dele é sintoma e quanto é a causa do que estamos vendo? Há muitos componentes diferentes no extremismo. Parte é antiglobalismo, outra parte é nativismo e outra é ainda racismo puro e simples. Não é algo homogêneo. Líderes podem tentar alimentar essas paixões ou aplacá-las, direcioná-las para propósitos mais construtivos. Trump gastou muito, muito tempo alimentando essas paixões, em vez de tentar solucionar os problemas que estão na raiz delas. O medo devido à insegurança econômica, por exemplo, Trump fez muito pouco para resolver essa questão. Espero que Biden comece logo a fazer algo nessa frente, porque é um problema muito profundo nos EUA, assim como no Brasil, na Europa Ocidental e no Reino Unido, onde estou.

Mas muitas vezes o que os líderes fazem é simplesmente desviar a atenção das pessoas para os que estão mais abaixo na ladeira econômica, para os imigrantes. E essa foi a assinatura de Trump.

Além da insegurança econômica, que, como o sr. diz, é um problema transnacional, há alguma fratura específica das instituições americanas na raiz do extremismo? É complexo. Para alguns países, e certamente nos EUA, há uma preocupação com a perda da soberania nacional, além da insegurança econômica, causada pela globalização e pela automação, todas conectadas.

O que é realmente necessário é liderança para se conectar com a classe média trabalhadora e criar empregos reais, dar segurança a essas pessoas. Tem havido muita atenção e uso de políticas públicas para atender às necessidades de pessoas com muito dinheiro disponível, presumindo que esse dinheiro vai percolar até os mais pobres, mas isso não aconteceu e não há razão para acreditar que vá acontecer.

É preciso haver um esforço mais concentrado. O maior desafio de política externa que Biden enfrenta na verdade é doméstico: conectar o que se faz internacionalmente com as necessidades dos americanos médios. A política externa precisa pagar dividendos para um amplo corte transversal de americanos.

Não é para se retirar do mundo e se ensimesmar, mas descobrir como conciliar os dois polos.

O presidente, e mesmo seus oponentes, enfatizam o fato de que mais de 70 milhões de americanos votaram em Trump. O que esses números indicam sobre a política americana? Quão extremos são esses eleitores? Esse número expressivo de votos é um reflexo de como os Estados Unidos estão profundamente polarizados em linhas partidárias. Não quero descartar a facção considerável do Partido Republicano que realmente acredita no que Trump representa, o que é definitivamente um problema para o Partido Republicano e para a República americana.

Mas muitos dos republicanos que votaram em Donald Trump não toleram a invasão do Capitólio, mas são profundamente contra os democratas e as políticas que muitos deles pensam que os democratas representam. Políticas que eles veem como ameaça a seus interesses. Ou seja, o número mostra muito da oposição à política democrata, além de apoio a Trump.

A oposição ferrenha a políticas democratas se deve mais a valores morais, como defesa da família tradicional, ou a visões de quanto o Estado deve agir para proteger os mais desfavorecidos? Há uma terceira opção, que a meu ver é a mais forte: o medo da perda de poder. A demografia dos EUA está mudando, muitos americanos brancos não estão felizes com isso, e seus representantes no Congresso estão refletindo isso. Esses argumentos sobre fraude eleitoral são uma tentativa de deslegitimar os votos principalmente dos afro-americanos, mas também, em alguns casos, dos eleitores latinos. O que os representantes republicanos e senadores que se opuseram à certificação de Joe Biden estavam fazendo foi colocar um marco sobre esta questão.

O que esperar do trumpismo no Partido Republicano com Trump fora da Presidência? Devem ser enfraquecidos pelo que aconteceu ontem [quarta, 6], ao menos no curto prazo. Mais fundamentalmente, serão enfraquecidos pela perda de duas cadeiras do Senado na Geórgia. Haverá muitas recriminações dentro do Partido Republicano sobre quem é o responsável pela derrota, pela perda da maioria, e o que precisa ser feito para reconstruir o partido. O que se pode esperar nos próximos meses é um monte de acusações e apontar de dedos. Alguns dirão que a culpa é de Trump, outros que é de todos os republicanos que o apoiaram. E uma fração vai questionar se o problema não é que o partido na realidade não cumpriu sua promessa ao povo americano, de dar segurança ao emprego.

Na prática, há como arrefecer a polarização extrema na política dos EUA? Sim, mas não da noite para o dia. Biden terá que encontrar uma maneira de falar a um grupo mais amplo de americanos. Mais que falar, de acenar para eles por meio de alguns gestos simbólicos, mostrando a líderes republicanos que está disposto a encontrá-los num meio termo. Mais fundamentalmente, por meio de políticas em um terreno comum com os republicanos, ainda que não com todos. Áreas em que ele possa construir algum tipo de apoio interpartidário ou bipartidário. Uma área em que isso é possível é nas políticas industrial e de infra-estrutura, desde que vá além dos encraves urbanos democratas e se dedique às áreas rurais republicanas.

Outra área em que Biden pode encontrar algum terreno comum é na China. É uma questão complicada, mas há enorme preocupação sobre a China nos Estados Unidos, devido à perda de empregos, da terceirização de empregos para a China, na verdade um reflexo da globalização. Biden precisa encontrar uma maneira de lidar com isso de forma programática, de atrair de novo os operários que Donald Trump conseguiu conquistar e tirar do Partido Democrata. Ele precisa redefinir a abordagem dos democratas nas questões de comércio e investimento. Não se trata de colocar pontes levadiças ou construir muros ao redor dos Estados Unidos, nem de agir unilateralmente. É mais sensato trabalhar com seus aliados tradicionais. Há caminhos. Mas não devemos nos enganar, não há uma varinha mágica.


RAIO-X

Peter Trubowitz é professor de relações internacionais da London School of Economics e diretor do Centro de Estudos sobre os Estados Unidos (US Centre) da universidade. Foi professor de governo na Universidade do Texas em Austin e atuou como visitante em Harvard, Princeton, Universidade de Estudos Internacionais de Pequim, Universidade do Chile e Centro de Pesquisa Econômica no México.

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