Descrição de chapéu Governo Biden Coronavírus

Perfil conciliatório de Biden pode atrasar resposta à pandemia e aprofundar divisão democrata

Presidente evita usar mecanismo que irritaria republicanos, mas aprovaria pacote de US$ 1,9 tri com rapidez

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Washington

A ideia de unir todos os americanos é a principal aposta da retórica de Joe Biden, mas, na prática, tem potencial para se tornar um dos primeiros entraves de seu governo. O perfil conciliatório do novo presidente dos EUA pode contribuir para o atraso da aprovação do principal pacote de alívio econômico diante da pandemia e aprofundar ainda mais as divisões do Partido Democrata.

Biden assumiu um país devastado pelo coronavírus e tem trabalhado para mostrar que sua prioridade é o combate à Covid-19, que já matou mais de 400 mil pessoas nos EUA.

Nos primeiros dias no Salão Oval, o democrata assinou várias ordens executivas que centralizam na Casa Branca a luta contra a pandemia, mas boa parte delas depende de recursos que ainda precisam ser aprovados pelo polarizado Congresso americano.

Bandeiras para representar as pessoas que não puderam estar na posse de Biden colocadas no National Mall, em Washington
Bandeiras para representar as pessoas que não puderam estar na posse de Biden colocadas no National Mall, em Washington - Jason Andrew - 20.jan.21/The New York Times

Antes mesmo de Biden tomar posse, na quarta-feira (20), líderes democratas articulavam maneiras de chancelar rapidamente o pacote de alívio econômico no valor de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10 trilhões), considerado ideal pelo novo presidente, porém sob forte resistência de republicanos.

Para driblar os adversários, parte dos democratas queria usar um mecanismo conhecido como "conciliação", que permite acelerar a votação de projetos orçamentários no Senado.

O arranjo exige apenas maioria simples para aprovar medidas que envolvem orçamento e impede o uso da obstrução por opositores —como o Senado está hoje dividido entre 50 votos para republicanos e 50 para democratas, com desempate feito pela vice-presidente, Kamala Harris, a vitória do governo estaria praticamente garantida. Biden, porém, travou as movimentações, frustrando seus colegas de partido.

Político profissional há 48 anos e conhecido por seu hábil poder de negociação, ele tem dito a aliados que não quer forçar a mão de saída e prefere tentar conquistar o voto de republicanos, num aceno ao bipartidarismo e à união que foram o mote de sua campanha e discurso de posse.

Segundo o site Politico, assessores de Biden já entraram em contato com senadores republicanos moderados, como Lisa Murkowski (Alasca), para marcar conversas sobre o tema. A postura do presidente, no entanto, irritou parlamentares democratas que queriam agir rápido e evitar os tropeços que marcaram o início do mandato de Barack Obama, de quem Biden era vice.

A avaliação é a de que, em meio a múltiplas crises, não há mais tempo para negociações que podem custar cifras importantes do projeto. Se aprovado, o pacote vai liberar dinheiro para ajudar no combate ao vírus e para cumprir a promessa de Biden de vacinar 100 milhões de pessoas em 100 dias.

O primeiro presidente negro da história dos EUA também esticou a corda para tentar conseguir o voto de republicanos em apoio a seu pacote econômico, diante da crise financeira de 2008, mas acabou aprovando medidas menores e mais sutis do que esperava. É consenso entre analistas que Biden não vai fazer muita coisa para além da pandemia e da crise econômica até meados de 2022.

Os democratas têm maioria na Câmara e no Senado —neste, com o voto de minerva de Kamala—, mas podem perder essa vantagem nas eleições legislativas no fim do ano que vem. Na revista The Atlantic, o jornalista Derek Thompson escreve que Biden deveria "ir grande, rápido e simples", sem "repetir os erros de Obama", se quiser deixar suas marcas Legislativas em um dos piores momentos da história dos EUA.

Na visão de Thompson, Obama achou que teria o voto de parlamentares republicanos ao criar um caldo social favorável às suas principais medidas entre os americanos —o que não aconteceu por completo.

Desta vez, o contexto é diferente. A crise que assola os EUA envolve a pior pandemia dos últimos 100 anos, os mortos por Covid-19 devem chegar à sombria marca de meio milhão no mês que vem, e o programa de vacinação, que começou em dezembro, está bem atrasado —dos 37 milhões de doses distribuídos, somente 17 milhões foram administrados no país.

Mas isso não parece contar a favor de Biden em termos de costura política. O cenário já faz analistas questionarem até que ponto o presidente vai insistir antes de aceitar que os republicanos não devem ceder e como o democrata vai agir na sequência, em outras votações importantes.

Senadores republicanos moderados —e que costumavam fazer críticas públicas ao agora ex-presidente Donald Trump—, Mitt Romney (Utah) e Susan Collins (Maine) já sinalizaram que não vão votar a favor de um pacote no valor de US$ 1,9 trilhão.

O montante inclui US$ 415 bilhões (R$ 2,25 trilhões) para reforçar a resposta à pandemia e a vacinação, cerca de US$ 1 trilhão (R$ 5,42 trilhões) para ajuda direta às famílias, e outros US$ 440 bilhões (R$ 2,38 trilhões) em incentivos a pequenas empresas e comunidades particularmente atingidas pelo coronavírus.

O auxílio emergencial proposto por Biden às famílias americanas é de US$ 1.400 (R$ 7.600), além dos cheques de US$ 600 (R$ 3.250) já aprovados no Congresso.

Às dificuldades de articulação soma-se o debate do impeachment de Trump, que foi aprovado pela Câmara em 13 de janeiro e deve ser enviado ao Senado nesta segunda-feira (25). O julgamento que pode, inclusive, tirar os direitos políticos do ex-presidente e impedi-lo de concorrer novamente à Casa Branca em 2024 deve desviar a atenção dos parlamentares de qualquer outro tipo de votação.

Ciente dos obstáculos, Biden assinou na sexta-feira (22) duas ordens executivas para turbinar o auxílio emergencial enquanto não consegue avançar com o pacote econômico no Congresso —os decretos visam aumentar os programas de ajuda aos desempregados e àqueles que recorrem a bancos alimentares, atuando diretamente no combate à fome, além de fortalecer os direitos sociais de trabalhadores.

Um dia antes, Biden já havia assinado outras dez ordens executivas, que estabeleciam quarentena obrigatória para viajantes que chegam aos EUA e exigência do uso de máscaras em prédios públicos, aeroportos, aviões, trens e ônibus. Outras delas, como a aplicação de testes de detecção da Covid-19 para que escolas reabram até maio e o reembolso dos estados que enviaram suas Guardas Nacionais para reforçar o combate à pandemia, também dependem da aprovação do pacote econômico.

As ordens executivas não precisam do aval do Legislativo, mas podem ser contestadas na Justiça.

Depois de uma temporada de armistício durante a campanha eleitoral, integrantes da ala mais à esquerda do Partido Democrata começam a se incomodar com a enxurrada de decretos e já admitem reservadamente que muitos deles não devem de fato se concretizar.

Outros ainda se ressentem do que Biden deixou de fora de seu programa de governo e pensam em maneiras de pressioná-lo por avanços mais estruturais. Apesar das medidas simbólicas sobre clima e meio ambiente, como o retorno dos EUA ao Acordo de Paris, Biden não abraçará, por exemplo, o saúde grátis para todos, bandeira do senador Bernie Sanders, ou o "Green New Deal" —plano em que a deputada Alexandra Ocasio-Cortez propunha mudanças na economia americana para que 100% da demanda por energia fosse atendida por meio de fontes limpas e renováveis.

Biden é um político centrista, mas formou um amplo arco para vencer Trump, que envolveu todas as matizes de seu partido. De dentro da Casa Branca, o presidente terá que administrar as demandas de uma esquerda democrata muito mais fortalecida do que na era Obama, enquanto calcula o custo político de negociar também com o outro lado do corredor do Congresso.

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