Descrição de chapéu Coronavírus

Covid escancarou estruturas precárias de saúde e saneamento básico da Índia

Segunda onda do coronavírus desmoronou sistema já frágil devido a baixo investimento do governo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Samaan Lateef
Nova Déli

Em setembro de 2019, o premiê indiano Narendra Modi recebeu um prêmio da Fundação Bill e Melinda Gates, em Nova York, pela campanha de saneamento lançada pelo seu governo, a Missão Índia Limpa.

No mesmo dia, duas crianças dálits, membros da casta mais baixa do país, foram espancadas até a morte no vilarejo de Bhavkhedi, no estado de Madhya Pradesh, por defecarem ao ar livre. Documentos do governo indiano sustentavam que todas as casas no vilarejo possuíam uma privada e, por isso, o povoado foi classificado como “livre da defecação ao ar livre”.

Mas as crianças —de 10 e 12 anos— foram mortas porque não tinham privada em casa e porque defecaram num campo próximo a uma área que pertence a uma comunidade Yadav, de casta mais alta. Dois homens golpearam as crianças na cabeça com um bastão e as mataram no próprio local.

Parentes carregam corpo de vítima da Covid em crematório em Nova Déli, na Índia
Parentes carregam corpo de vítima da Covid em crematório em Nova Déli, na Índia - Sajjad Hussain - 5.mai.21/AFP

O governo diz que, desde o lançamento da campanha, em outubro de 2014, mais de 100 milhões de banheiros foram construídos na Índia, tornando o país inteiro uma zona “livre de defecação ao ar livre”.

O assassinato das duas crianças, no entanto, evidenciou o contraste entre a realidade e as declarações oficiais, ressaltando as deficiências estruturais do sistema de saúde e de saneamento básico na Índia.

Um enredo similar se repetiu em janeiro deste ano, quando os casos de Covid no país diminuíram e, no Fórum Econômico Mundial, Modi declarou vitória ao dizer que a Índia tinha salvado a humanidade de um grande desastre “por ter contido efetivamente o coronavírus”. Cinco meses depois, porém, os números da crise sanitária mostram um cenário de caos: nos últimos 15 dias o país vem marcando recordes mundiais diários de novos casos, e o aumento de infecções é movido pelo surgimento de uma variante que sobrecarregou completamente o sistema de saúde e os locais funerários do país.

Lá Fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

A queda nas cifras de mortes e casos de Covid no começo do ano ainda é um enigma. Criticadas por cientistas por ocultarem dados, as autoridades atribuíram o recuo a uma imunidade natural que os indianos possuiriam graças à exposição a outros vírus. Tal tese criou a ideia de algum tipo de excepcionalidade e foi ecoada desde os mais altos escalões do governo até as administrações estaduais.

Em março, dezenas de milhares de pessoas assistiram a partidas de críquete no estádio Narendra Modi, em Gujarat. O evento reforçou o orgulho nacional, apesar dos avisos de que as contaminações por Covid estavam aumentando. Enormes encontros religiosos hindus e comícios também foram promovidos em diversas regiões, e o próprio premiê comandou eventos políticos imensos nos quais a maioria não usava máscara. Assim, agora a Índia se vê travando uma batalha duríssima contra a pandemia.

Os 414.188 novos casos de Covid registrados apenas na quinta (6) elevaram o total no país para mais de 21,4 milhões, atrás apenas do acumulado nos EUA. No mesmo dia, o Ministério da Saúde indiano também notificou outros 3.915 óbitos, elevando as mortes por Covid na Índia para 234.083.

Com a dramática segunda onda da pandemia fustigando o país, há pessoas morrendo nas ruas, não apenas devido ao vírus, mas porque o sistema de saúde do país desmoronou. Faltam oxigênio e leitos de UTI em hospitais, e locais funerários estão sem espaço, o que faz com que corpos sejam empilhados.

No Índice Global de Segurança de Saúde de 2019, um ranking que lista o grau de preparo de países para enfrentar uma pandemia, a Índia ocupou o 57º lugar, abaixo do Brasil, na 22ª posição. Em termos de investimentos, o país dedica apenas 1,3% de seu PIB ao setor de saúde, cifra mais uma vez inferior à do Brasil (9,5%) e a de outros países classificados como os mais pobres do mundo.

O governo, no entanto, maquia os números para tentar mostrar que os gastos com saúde foram mais altos. Para tal, acrescenta ao orçamento de saúde a despesa única de US$ 6,5 bilhões (R$ 33,97 bilhões) com vacinas contra a Covid e de US$ 18,29 bilhões (R$ 95,59 bilhões) com nutrição, água e saneamento.

No início deste mês, a consultoria americana Fitch Solutions afirmou que a falta contínua de financiamento para infraestrutura de saúde levou o sistema indiano a desabar sob a segunda onda. “Além disso, as necessidades crescentes da população não são atendidas devido à ineficiência, disfunção e escassez aguda de sistemas de prestação de assistência médica no setor público.”

Some-se a isso o fato de que, segundo a Fitch, 80% dos indianos não possuem nenhum tipo de cobertura significativa de saúde e que cerca de 68% dos habitantes têm acesso limitado ou nenhum a remédios essenciais. Assim, a pandemia evidenciou a importância crucial do setor público na oferta de saúde.

O sanitarista Asif Wani defende que a Índia aumente seus gastos com saúde pública especialmente em postos na zona rural, que atendem a mais de 65% da população indiana. Em fevereiro de 2020, a proporção de médicos em todo o país era de 1 a cada 1.404 habitantes, índice abaixo da razão considerada ideal pela Organização Mundial da Saúde (1 a cada 1.000 hab.). Na zona rural, esse dado é muito pior e chega a 1 a cada 10.926, segundo o Perfil Nacional de Saúde de 2019. Para comparação, no Brasil essa taxa é de 1 médico para cada 417 habitantes, segundo dados do Conselho Federal de Medicina.

“Falta acesso a ferramentas médicas básicas, equipamentos e verbas adequadas", afirma Wani. "Além disso, precisamos enfocar o atendimento preventivo no nível primário e secundário do sistema de saúde, para fazer frente a qualquer eventualidade.” O sanitarista afirma que profissionais de saúde que trabalham nas comunidades não participam dos processos decisórios e não têm acesso a pesquisas mais recentes. Por isso, argumenta ele, o país precisa abrir seu sistema médico a parcerias internacionais, para que assim estudantes tenham contato prático com os avanços mais recentes da ciência médica.

O problema estrutural na saúde indiana deságua em números: quase 5,8 milhões de pessoas morrem anualmente de doenças não transmissíveis (DNTs) no país, o que significa que um a cada quatro indianos corre o risco de morrer de uma DNT antes de chegar aos 70 anos, e pelo menos 33 de cada mil crianças nascidas neste mês vão morrer antes de completar um ano.

Por outro lado, mesmo que muitos indianos ainda não tenham acesso a, por exemplo, água limpa, vários indicadores melhoraram no país desde 1980. Naquele ano, a cobertura de saneamento básico na zona rural era estimada em 1% —em 2018, chegou a 95%. Apenas alguns anos atrás, em 2015, quase metade da população do país, cerca de 568 milhões de pessoas, sofria a indignidade de defecar em campos, florestas, rios ou outros espaços públicos devido à falta de acesso a banheiros.

A Índia sozinha respondia por 90% das pessoas no sul da Ásia e metade do 1,2 bilhão de pessoas pelo mundo que defecavam ao ar livre. Em 2019, segundo dados oficiais, no entanto, o número de habitantes sem acesso a banheiros teve uma queda significativa, diminuindo em 450 milhões de pessoas.

A mudança é essencial, já que especialistas apontam a falta de saneamento básico como elemento gerador de um efeito cascata, prejudicando o desenvolvimento do país na medida em que trabalhadores adoecem e têm vida mais curta, sem poder custear o ensino dos filhos ou lhes garantir um futuro estável.

De acordo com um artigo publicado na revista científica The Lancet, a insuficiência de serviços de água, saneamento e higiene nas unidades de saúde da Índia contribui para o alto índice de mortalidade neonatal, que hoje está em 24 mortes a cada mil crianças nascidas vivas.

A sepse, reação potencialmente grave que se espalha pelo organismo diante de uma infecção e se dissemina principalmente em unidades de saúde, responde por até 15% da mortalidade neonatal total e 11% das mortes maternas. E os riscos não param quando os bebês são levados para casa em comunidades que não têm sanitários.

Relatórios indicaram também que 22% das escolas do país não têm banheiros apropriados para meninas, 58% das pré-escolas não contam com banheiro nenhum e 56% das pré-escolas não têm água no local.

Pode-se argumentar que é preciso uma tragédia para conscientizar as pessoas dos impactos adversos da tendência indiana histórica de baixos gastos públicos com saúde. O professor de epidemiologia Madhukar Pai, da Universidade McGill, no Canadá, disse que a Índia é uma história que deve servir de advertência ao mundo. “Se declararmos vitória antes da hora, abrirmos tudo, desistirmos de investir na saúde pública e não vacinarmos rapidamente, as novas variantes podem ser devastadoras”, escreveu ele no Twitter.


Números da saúde na Índia

0,53

leitos hospitalares para cada 1.000 habitantes tem a Índia, segundo o Banco Mundial; no Brasil, proporção é de 2,09 para 1.000 habitantes


1,3%
do PIB indiano é investido em saúde, menos de um sétimo do que no Brasil


1.404
pessoas para cada médico tem a Índia, enquanto no Brasil a taxa é de 1 profissional a cada 417 habitantes

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.