Dois rituais devem marcar o início dos trabalhos da Assembleia Constituinte do Chile, neste domingo (4).
O primeiro será conduzido pela legisladora eleita Francisca Linconao, 62, também conhecida por ser a "machi" —autoridade espiritual— do povo mapuche. À frente da segunda cerimônia estará Isabella Mamani, 33, representante eleita pelos aymara, outra das etnias indígenas sul-americanas.
Ainda que comandem eventos separados, elas farão a mesma coisa: rezarão em seus idiomas nativos.
Depois, começará o trabalho dos membros da Assembleia, que se reunirão por até um ano —nove meses, prorrogáveis por mais três— com o objetivo de redigir uma nova Constituição para o país, em substituição à que vigora desde 1981, escrita sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
A votação que elegeu os constituintes, em maio, representou uma derrota para a direita e para a atual aliança de centro-direita pela qual o presidente Sebastián Piñera foi eleito. O setor governista ficou com apenas 37 das 155 cadeiras (24%), enquanto a centro-esquerda obteve 53 assentos (34%), e os independentes, 65 (42%). A aprovação de cada lei da nova Carta demandará o aval de dois terços da Casa.
Chama a atenção nesse início de processo o comportamento dos constituintes independentes, grande surpresa da votação ao derrotarem as legendas tradicionais do Chile desde a redemocratização do país.
Para o advogado socialista Fernando Atria, 52, eleito pela aliança de centro-esquerda Fuerza Común, é improvável que eles formem novos partidos à semelhança das siglas já conhecidas. Em seu lugar, segundo Atria, deve ocorrer um movimento parecido com o que se seguiu ao plebiscito que pôs fim à ditadura, em 1989. "Por um tempo, haverá uma fluidez de alianças e bancadas, até que elas se fixem em um novo mapa. Creio que os partidos serão menos formais", diz.
O independente Jorge Baradit, 52, por sua vez, afirma que o esforço de seu bloco será para redefinir o modo de participação da população nas tomadas de decisões, o que deve ocorrer por meio de encontros com organizações sociais. "A política tradicional foi derrotada. Portanto, se não encontrarmos um novo modo de exercer a política, haverá uma rejeição cada vez maior a ela", diz o historiador. "Os constituintes têm de fazer essa Constituição ao lado dos que estão insatisfeitos com o modelo, e não separados deles."
Os índices de comparecimento às urnas nas mais recentes votações do Chile ficaram aquém do esperado.
No pleito que formou a Constituinte, 43,4% dos eleitores foram votar. Nas eleições regionais, em junho, apenas 19,7%. O coronavírus —que infectou mais de 1,5 milhão de pessoas no país e deixou mais de 32 mil mortos— atrapalhou, mas, historicamente, a participação vem caindo desde antes da crise sanitária.
Também não ajuda o fato de haver tantas eleições no mesmo ano. Daqui a duas semanas ocorrem as primárias presidenciais. Logo depois, em novembro, os chilenos escolhem o sucessor de Piñera e os novos membros do Congresso. "É uma pena que [as próximas eleições] ocorram enquanto estivermos escrevendo a Constituição, porque, de algum modo, isso vai politizar nosso trabalho. Na campanha, haverá tanto críticas ao nosso trabalho quanto candidatos a fim de usá-lo como bandeira", diz Baradit.
No campo da direita, os principais candidatos na primária presidencial são Joaquín Lavín (União Democrática Independente), Mario Desbordes (Renovação Nacional), Ignacio Briones (Evópoli) e o independente Sebastián Sichel. Pela esquerda, disputam Daniel Jadue, do Partido Comunista, e Gabriel Boric, da Frente Ampla. Pesquisas recentes indicam um cenário ainda incerto: se a eleição ocorresse hoje, segundo o instituto Cadem, Jadue estaria liderando, empatado com Lavín, ambos com 14%.
Entre os principais temas a serem abordados pela Constituinte estão as bandeiras do movimento que estourou em outubro de 2019 e que levou milhares de chilenos às ruas durante meses: mais acesso a educação e saúde de qualidade, reforma do sistema de pensões e inclusão das comunidades indígenas.
Para o cientista político Patricio Navia, professor da Universidade de Nova York, a Constituinte trará "uma decepção no curto prazo", e há risco de novas manifestações de rua. "As pessoas pediram essa nova Carta porque querem mais direitos sociais, querem melhores aposentadorias e pensões. Mas isso tomará um tempo, se é que se chega a acordos na Constituinte. E, ao levar tempo, não atenderá as urgências."
O especialista também afirma que os redatores da nova Constituição esbarrarão em outros obstáculos, como o dos saques dos fundos de pensão autorizados pelo Congresso no ano passado como forma de aliviar o impacto econômico da pandemia. "As pessoas gastaram um dinheiro que era para a velhice. Vai faltar para o sistema previdenciário no futuro. Ou seja, a nova Carta pedirá melhores aposentadorias, mas o dinheiro para isso já foi gasto. Será um problema que estamos entregando para as próximas gerações."
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