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Chile inicia reformulação da Constituição em meio a turbulento ano eleitoral

Legisladores temem politização do debate em torno das novas leis como ferramenta na campanha presidencial

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Buenos Aires

Dois rituais devem marcar o início dos trabalhos da Assembleia Constituinte do Chile, neste domingo (4).

O primeiro será conduzido pela legisladora eleita Francisca Linconao, 62, também conhecida por ser a "machi" —autoridade espiritual— do povo mapuche. À frente da segunda cerimônia estará Isabella Mamani, 33, representante eleita pelos aymara, outra das etnias indígenas sul-americanas.

Ainda que comandem eventos separados, elas farão a mesma coisa: rezarão em seus idiomas nativos.

Sede do Congresso Nacional, em Santiago, que abrigará os 155 membros da Constituinte chilena
Sede do Congresso Nacional, em Santiago, que abrigará os 155 membros da Constituinte chilena - Javier Torres - 30.jun.21/AFP

Depois, começará o trabalho dos membros da Assembleia, que se reunirão por até um ano —nove meses, prorrogáveis por mais três— com o objetivo de redigir uma nova Constituição para o país, em substituição à que vigora desde 1981, escrita sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

A votação que elegeu os constituintes, em maio, representou uma derrota para a direita e para a atual aliança de centro-direita pela qual o presidente Sebastián Piñera foi eleito. O setor governista ficou com apenas 37 das 155 cadeiras (24%), enquanto a centro-esquerda obteve 53 assentos (34%), e os independentes, 65 (42%). A aprovação de cada lei da nova Carta demandará o aval de dois terços da Casa.

Chama a atenção nesse início de processo o comportamento dos constituintes independentes, grande surpresa da votação ao derrotarem as legendas tradicionais do Chile desde a redemocratização do país.

Para o advogado socialista Fernando Atria, 52, eleito pela aliança de centro-esquerda Fuerza Común, é improvável que eles formem novos partidos à semelhança das siglas já conhecidas. Em seu lugar, segundo Atria, deve ocorrer um movimento parecido com o que se seguiu ao plebiscito que pôs fim à ditadura, em 1989. "Por um tempo, haverá uma fluidez de alianças e bancadas, até que elas se fixem em um novo mapa. Creio que os partidos serão menos formais", diz.

O independente Jorge Baradit, 52, por sua vez, afirma que o esforço de seu bloco será para redefinir o modo de participação da população nas tomadas de decisões, o que deve ocorrer por meio de encontros com organizações sociais. "A política tradicional foi derrotada. Portanto, se não encontrarmos um novo modo de exercer a política, haverá uma rejeição cada vez maior a ela", diz o historiador. "Os constituintes têm de fazer essa Constituição ao lado dos que estão insatisfeitos com o modelo, e não separados deles."

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Os índices de comparecimento às urnas nas mais recentes votações do Chile ficaram aquém do esperado.

No pleito que formou a Constituinte, 43,4% dos eleitores foram votar. Nas eleições regionais, em junho, apenas 19,7%. O coronavírus —que infectou mais de 1,5 milhão de pessoas no país e deixou mais de 32 mil mortos— atrapalhou, mas, historicamente, a participação vem caindo desde antes da crise sanitária.

Também não ajuda o fato de haver tantas eleições no mesmo ano. Daqui a duas semanas ocorrem as primárias presidenciais. Logo depois, em novembro, os chilenos escolhem o sucessor de Piñera e os novos membros do Congresso. "É uma pena que [as próximas eleições] ocorram enquanto estivermos escrevendo a Constituição, porque, de algum modo, isso vai politizar nosso trabalho. Na campanha, haverá tanto críticas ao nosso trabalho quanto candidatos a fim de usá-lo como bandeira", diz Baradit.

No campo da direita, os principais candidatos na primária presidencial são Joaquín Lavín (União Democrática Independente), Mario Desbordes (Renovação Nacional), Ignacio Briones (Evópoli) e o independente Sebastián Sichel. Pela esquerda, disputam Daniel Jadue, do Partido Comunista, e Gabriel Boric, da Frente Ampla. Pesquisas recentes indicam um cenário ainda incerto: se a eleição ocorresse hoje, segundo o instituto Cadem, Jadue estaria liderando, empatado com Lavín, ambos com 14%.

Entre os principais temas a serem abordados pela Constituinte estão as bandeiras do movimento que estourou em outubro de 2019 e que levou milhares de chilenos às ruas durante meses: mais acesso a educação e saúde de qualidade, reforma do sistema de pensões e inclusão das comunidades indígenas.

Para o cientista político Patricio Navia, professor da Universidade de Nova York, a Constituinte trará "uma decepção no curto prazo", e há risco de novas manifestações de rua. "As pessoas pediram essa nova Carta porque querem mais direitos sociais, querem melhores aposentadorias e pensões. Mas isso tomará um tempo, se é que se chega a acordos na Constituinte. E, ao levar tempo, não atenderá as urgências."

O especialista também afirma que os redatores da nova Constituição esbarrarão em outros obstáculos, como o dos saques dos fundos de pensão autorizados pelo Congresso no ano passado como forma de aliviar o impacto econômico da pandemia. "As pessoas gastaram um dinheiro que era para a velhice. Vai faltar para o sistema previdenciário no futuro. Ou seja, a nova Carta pedirá melhores aposentadorias, mas o dinheiro para isso já foi gasto. Será um problema que estamos entregando para as próximas gerações."

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