Descrição de chapéu indígenas

Na esteira dos EUA, direita australiana tenta proibir teoria crítica da raça nas escolas

Senado do país aprovou moção sobre o tema proposta pela senadora Pauline Hanson, do One Nation

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Guarulhos

Na esteira dos EUA, onde mais da metade dos estados discute projetos para limitar o debate racial em sala de aula, a Austrália viu o tema ganhar espaço em seu Legislativo. No mês passado, o Senado do país aprovou, por 30 votos a 28, uma moção para que o governo federal “rejeite a teoria crítica da raça no currículo nacional”.

A medida vem no momento em que o país revisa o conteúdo do currículo escolar, que estabelece os conhecimentos e as habilidades a serem ensinados a todos os alunos da educação básica.

Feita a cada seis anos, a revisão é coordenada por um órgão independente, a Autoridade de Avaliação do Currículo (Acara, na sigla em inglês), que formula o documento ao lado de professores e especialistas, mas também passa por outras duas etapas fundamentais: uma consulta pública, que terminou em 8 de julho, e o aval dos ministros da Educação a nível federal, estadual e municipal.

O principal ponto de debate está na forma como o currículo revisado pretende falar sobre a colonização britânica no território australiano —iniciada na segunda metade do século 18— e as consequências desse processo para os povos indígenas.

Alunas em uma escola de Coogee, no subúrbio de Sydney, cidade mais populosa da Austrália - Saeed Lhan - 17.jun.13/AFP

O novo documento traz com maior ênfase trechos que abordam a colonização sob a ótica dos indígenas, em especial na revisão de história. São passagens como a que diz que se deve investigar “a destruição de estilos de vida e culturas, as guerras de fronteira, o genocídio, e como os impactos da colonização são vistos como uma invasão na perspectiva de muitos indígenas australianos”.

Há também tópicos que exploram o desenrolar dessa violência nas instituições do país, como o que elenca o estudo do "pano de fundo e das causas da luta dos indígenas australianos por direitos e liberdade, como a legislação e as políticas discriminatórias”.

Outro trecho diz ainda que é preciso estudar a disputa sobre o feriado de 26 de janeiro. Nacionalmente, a data é comemorada como o Dia da Austrália, uma alusão ao dia em que as primeiras frotas britânicas desembarcaram no país em 1788. Os povos indígenas questionam esse título e, desde 1938, o chamam de Dia do Luto —referência aos massacres cometidos pelos colonizadores.

Esse tipo de reflexão incomodou a ultradireita australiana. A moção aprovada durante votação apertada em 21 de junho foi proposta pela senadora Pauline Hanson, do One Nation (nação única), legenda conhecida pela defesa de políticas xenofóbicas e anti-imigração.

A proposta de novo currículo não traz nenhuma referência literal à teoria crítica da raça, referida na moção. Criada em meados da década de 1980 nos EUA, ela é uma escola de pensamento jurídico fundada por professores negros e latinos para estudar como o racismo permeia a lógica das instituições e torna-se estrutural, interferindo na vida dos cidadãos mesmo quando não há um ato claro de discriminação.

Hanson tem usado as redes sociais para se manifestar contra o debate racial nas escolas. Em uma publicação no Facebook em 15 de junho, escreveu: “É por causa da teoria crítica da raça que temos termos como ‘racismo sistemático’ e ‘privilégio branco’. É por causa dela que crianças australianas têm sido humilhadas publicamente por serem brancos opressores”.

Ela também tem sido convidada para falar em programas de TV sobre o tema. Em 16 de junho, durante entrevista ao canal Sky News, Hanson disse que é sua prioridade banir a teoria crítica da raça das escolas. Acrescentou que os EUA servem de exemplo e contou ainda com o apoio do apresentador do programa, Alan Jones. Quando a senadora disse que “as pessoas acham que isso não é preocupante, mas é”, Jones emendou: “É claro que é”.

Para Alana Lentin, professora da Universidade do Oeste de Sydney e ex-presidente da Associação Australiana de Estudos Críticos de Raça e da Branquitude, o escopo da moção pode estar na teoria crítica, mas o real objetivo é se opor a quaisquer símbolos do movimento antirracista. “É algo simbólico, com o objetivo de se somar ao movimento global contra a teoria crítica da raça”, diz. “E Pauline Hanson quer se posicionar como uma das maiores articuladoras da extrema direita.”

Não é certo se o governo fará alguma movimentação para limitar os debates raciais. Senadores da coalizão conservadora que governa o país, porém, apoiaram em peso a moção.

Na sessão que votou o texto, o senador Jonathon Duniam, do Partido Liberal da Austrália —a sigla de centro-direita do primeiro-ministro Scott Morrison—, alegou que o governo vetaria quaisquer trechos do novo currículo que estivessem baseados no que diz a teoria crítica da raça. “Essa teoria é baseada na crença de que as leis e as instituições da nossa nação são inerentemente racistas”, disse.

A senadora Mehreen Faruqi, do Partido Verde —que se opôs à pauta, ao lado dos trabalhistas—, afirmou que aquilo sobre o que se falava não era a teoria crítica da raça e que veículos da mídia australiana, como Fox News e Sky News, contribuíam para essa desinformação. “Nós não vamos parar de lutar contra o racismo sistemático e pelas pessoas marginalizadas e discriminadas”, acrescentou.

Além do apoio da coalizão do governo, outros acenos chamam atenção. Em abril, quando a primeira versão do novo currículo tornou-se pública, o ministro da Educação, Alan Tudge, também do Partido Liberal, afirmou estar preocupado. “Acho que devemos honrar a história indígena e ensiná-la, mas isso não deve ser feito às custas da desonra da nossa herança ocidental, que nos fez a democracia liberal que somos hoje”, disse em entrevista ao Sky News. O ministro também afirmou que buscará costurar mudanças nesses pontos.

Alana Lentin, da Universidade do Oeste de Sydney, diz que o novo currículo avança não por incluir a história indígena, mas por abordar como os educadores devem ensiná-la. “Da forma como está o documento hoje, fica a critério do professor, e muitos ensinam a história da colonização apenas sob a perspectiva dos colonizadores.”

“Muitas vezes os alunos são ensinados sobre os aborígenes com uma imagem selvagem e primitiva, sem falar sobre as guerras de fronteira, os massacres, ou mesmo sobre as leis, os costumes e a política aborígene", diz. "Nada disso é ensinado a menos que você tenha a sorte de ter um professor que pense que isso é importante.”

Hoje a Austrália tem cerca de 798.400 indígenas —3,3% da população—, segundo dados da agência nacional de estatísticas. Eles estão divididos entre os povos aborígenes, que vivem na Austrália continental, e os povos das Ilhas do Estreito de Torres, arquipélago que faz parte do estado de Queensland, no nordeste do país.

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Em processo semelhante ao que aconteceu com os indígenas brasileiros durante a colonização portuguesa, na Austrália também houve massacres das populações nativas, que aos poucos vão sendo registrados na história. Um mapa desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Newcastle e atualizado periodicamente mostra que, de 1788 a 1930, o país teve 302 massacres —morte deliberada de seis ou mais pessoas indefesas em uma operação, segundo a metodologia adotada— envolvendo conflitos agrários. Neles, ao menos 7.952 indígenas foram assassinados por colonos.

A professora Lentin acredita que o fôlego adquirido pelos críticos do debate racial em sala de aula veio, em partes, como resposta ao movimento Black Lives Matter (vidas negras importam), que organizou protestos ao redor do mundo após o assassinato de George Floyd nos EUA, em maio de 2020. Mas observa que há um pano de fundo histórico na Austrália.

Ela se refere à disputa por diferentes interpretações sobre a história do país. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, após a organização dos indígenas australianos ganhar peso, acadêmicos conservadores cunharam a expressão “black armband history" (história de braçadeira preta). O adereço costuma ser usado em enterros, em alguns países, como forma de demonstrar luto. Os críticos se apropriaram do termo para dizer que a versão de um passado marcado por massacres e violência visa criar culpa entre os australianos e manchar sua história de conquistas.

Durante protesto na Austrália após a morte do americano George Floyd, mulher segura cartaz que diz: "Nossos indígenas pertencem ao país. Isso é genocídio" - Trevor Collens - 13.jun.20/AFP

Um abaixo-assinado iniciado por Lentin e por outros docentes reuniu 530 pessoas, a maioria acadêmicos, contra a moção aprovada no Senado. Entre outras coisas, o texto do documento diz que esse tipo de ataque proferido por figuras públicas “tem o efeito de legitimar o racismo numa sociedade colonial e procura minar o princípio da liberdade acadêmica”.

Em meio à discussão aberta no Senado australiano, a análise do novo currículo avança. Mas ainda deve levar alguns meses até que os ministros da Educação do país deem o aval. A ideia é que o documento seja efetivamente implementado nas escolas em 2022.

Os estados terão autonomia para decidir se acolhem o material na íntegra ou se o adaptam. Queensland, por exemplo, adota o currículo da forma como ele é redigido a nível nacional. Já o estado de New South Wales faz adaptações para atender a demandas locais.

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