A maior emissora do Afeganistão conseguirá sobreviver ao Talibã?

Programação da Tolo News sofreu mudanças desde que grupo extremista reassumiu controle do país

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Dan Bilefsky
The New York Times

A emissora afegã Tolo ficou conhecida nos últimos 20 anos por programas provocativos como “Burka Avenger” (vingadora de burca), em que uma super-heroína de animação usa artes marciais para derrotar vilões que querem fechar uma escola para meninas.

Milhões de telespectadores afegãos também acompanharam suas telenovelas turcas ousadas, o noticiário popular “6 P.M. News” e o reality show “Afghan Star”, com cantoras dançando na versão afegã do “American Idol”.

Âncora da Tolo News apresenta programa em estúdio em Cabul, no Afeganistão
Âncora da Tolo News apresenta programa em estúdio em Cabul, no Afeganistão - Ahmad Masood - 18.out.15/Reuters

Mas desde que o Talibã capturou a capital afegã, Cabul, em 15 de agosto, a programação da emissora vem sendo complementada por algo diferente: programas educativos sobre moralidade islâmica.

A possibilidade de seu cardápio usual de música pop e apresentadoras mulheres sobreviver no novo Emirado Islâmico do Afeganistão governado pelo Talibã será um barômetro da tolerância dos insurgentes em relação a visões e valores dissidentes.

“Para ser franco, me surpreende que ainda estejamos funcionando”, afirmou o coproprietário da Tolo, Saad Mohseni, ex-banqueiro de investimentos australiano-afegão que fundou o Moby Group, em 2002. “Conhecemos as ideias que o Talibã defende.”

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Ansioso por ser legitimado no palco internacional, o Talibã, desde que invadiu Cabul, vem procurando transformar sua imagem, oferecendo anistia a antigos rivais e incentivando mulheres a participar do governo. O grupo prometeu apoiar a liberdade de imprensa, sob a condição de os veículos de mídia subscreverem aos chamados “valores islâmicos”. Dias depois da captura de Cabul, um porta-voz do Talibã chegou a aparecer em um programa de jornalismo do Tolo apresentado por uma âncora mulher.

Mas jornalistas e defensores dos direitos humanos dizem que há sinais sombrios de uma repressão violenta à mídia em curso. Combatentes do Talibã perseguiram um jornalista da emissora alemã Deutsche Welle que já havia deixado o país, matando um membro de sua família a tiros e ferindo outro gravemente.

Mohseni disse que um jornalista da Tolo, Ziar Khan Yaad, e um cinegrafista foram espancados por cinco talibãs armados enquanto trabalhavam numa reportagem na última quarta-feira. Os talibãs teriam descido de um veículo Land Cruiser e confiscado os equipamentos e celulares dos jornalistas.

E o Talibã já impediu ao menos duas jornalistas mulheres de exercer suas funções na emissora pública Radio Television Afghanistan. A âncora mulher da Tolo que fez manchetes mundiais ao entrevistar um porta-voz do Talibã fugiu do país desde então, ao lado de outros jornalistas. Muitos influencers afegãos nas redes sociais desativaram suas contas de Facebook e Twitter e mergulharam na clandestinidade.

Entrevistada pelo telefone, Khadija Amin, âncora da emissora pública, contou que no dia em que o Talibã entrou em Cabul um dos militantes tomou o lugar dela na emissora.

O Talibã também avisou as mulheres afegãs que pode ser mais seguro para elas permanecerem em casa até que os soldados rasos do grupo terem sido treinados a não maltratá-las. “Estamos numa situação péssima”, disse Amin. Segundo ela, os jornalistas homens agora têm medo de se sentar ao lado de suas colegas mulheres ou até mesmo falar com elas. “Não há mais espaço para nós aqui.”

A Tolo ganhou destaque depois de os EUA terem derrubado o Talibã, em 2001, saciando a sede reprimida do público afegão por jornalismo e entretenimento, depois da proibição imposta pelos insurgentes aos noticiários independentes, música e cinema. Hoje a Tolo é a maior emissora do país. Seus canais em língua pashtun e dari são vistos por estimados 60% dos afegãos que assistem a TV ou ouvem rádio.

Em 2003, abastecido com uma doação de US$ 220 mil do governo americano, Mohseni abriu uma estação de rádio, a Arman FM, que tocava música pop afegã e indiana. Ele recorda que seus benfeitores americanos acharam que ele estava “doido”: mal havia eletricidade no Afeganistão, e não havia empresas de xampu ou refrigerantes que pudessem ser anunciantes. Mas em questão de meses a Arman virou sensação nacional. Alto-falantes tocavam os programas da emissora nas ruas de Cabul.

Hoje o Moby Group, de Mohseni, tem cerca de 500 funcionários no Afeganistão e transmite sua programação em toda a Ásia Central e do Sul e no Oriente Médio.

Observadores de longa data do Afeganistão dizem que seria difícil subestimar a influência exercida pela Tolo em moldar a cultura de mídia afegã. “A Tolo foi a pioneira”, disse Andrew North, ex-jornalista da BBC que ensinou jornalistas afegãos. “Ela chegou, mobilizou as pessoas, e outros seguiram seus rastros.”

Em janeiro de 2016, o Talibã atacou a emissora. Um terrorista suicida lançou seu carro contra um ônibus que levava funcionários da Tolo TV, matando sete profissionais e ferindo outros 15. O Talibã acusou a Tolo de “promover a obscenidade, a irreligiosidade, a cultura estrangeira e a nudez”.

Mohseni destacou que desta vez o Talibã terá dificuldade em reprimir a mídia noticiosa em um país que passou por transformações radicais nos últimos 20 anos. O Afeganistão que o Talibã conquistou neste mês possui uma cultura de mídia vibrante. Há cerca de 170 estações de rádio em todo o país e dezenas de estações de TV apenas em Cabul. Elas transmitem desde documentários jornalísticos até game shows. As redes sociais também oferecem uma plataforma heterodoxa para discussões e dissensão.

“A mídia tem sido uma das maiores conquistas do Afeganistão nos últimos 20 anos”, disse Mohseni. “É perigoso, estamos numa região de alto risco, mas as pessoas precisam ter a chance de se expressar.”

Para ele, uma repressão generalizada à mídia noticiosa também seria difícil nesta era de TikTok e Twitter. Mohseni destacou que cerca de 60% dos afegãos têm 25 anos ou menos e chegaram à maioridade em salas com alunos de ambos os sexos. Cresceram convivendo com mulheres sem véu e com o Snapchat.

“O Talibã de hoje é mais esperto. Ele examina ou proíbe os smartphones e o WhatsApp em vilarejos remotos. Os talibãs podem monitorar telefones”, disse. “Mas o país mudou, a população é jovem. O Talibã não vai conseguir de uma hora para outra desprogramar as pessoas e lhes dizer que a terra é plana.”

Masoud Sanjer, diretor de conteúdo do setor de entretenimento da Tolo, recordou que durante o último regime do Talibã ele conseguiu assistir a filmes estrangeiros como “Coração Valente” ao instalar uma antena parabólica proibida sobre seu telhado, escondida atrás de um muro de concreto.

Mohseni contou que depois de entrar em Cabul, os talibãs foram à sede da Tolo, confiscaram todas as armas fornecidas pelo Estado e disponibilizaram proteção à emissora, oferta educadamente rejeitada.

Segundo ele, embora muitas jornalistas mulheres tenham fugido, algumas continuam a fazer reportagens em campo, ignorando os apelos para que permaneçam em casa. Ainda que o conteúdo jornalístico da Tolo não esteja sendo censurado, disse Mohseni, uma revisão da cobertura recente feita pelo “6 P.M. News” revela alguns sinais de autocensura. Não há reportagens sobre a forma que um governo futuro do Talibã pode assumir, ou elas são extremamente discretas. O mesmo se aplica a perfis dos líderes do grupo.

Mesmo assim, a Tolo não tem se furtado a noticiar casos de mau comportamento de talibãs ou dissensão de afegãos, incluindo o movimento de resistência em Panjshir e os milhares que tentam escapar do país. O diretor da Tolo News, Lotfullah Najafizada, disse que após a queda de Cabul houve um debate interno sobre a conveniência de fechá-la. Mas a decisão tomada foi de permanecer no ar.

“Fechar a emissora teria dado um sinal ao Talibã”, afirmou. “Não recebemos ordens diárias do Talibã. Cobrimos o que consideramos serem notícias.” Mesmo assim, jornalistas e defensores da imprensa livre receiam que os avanços conquistados a duras penas possam desaparecer em pouco tempo.

Samiullah Mahdi, ex-gerente da Tolo e professor na Universidade de Cabul, comentou que jornalistas como ele passaram 20 anos se esforçando para construir uma indústria de jornalismo pluralista, recusando oportunidades de trabalho no exterior. Agora, muitos estão fugindo, incluindo ele próprio.

“Microfones e câmeras enfrentando AK-47s –é uma batalha difícil”, disse.

Encarando essa realidade, Mohseni disse que já traçou um plano de contingência. Se a Tolo for fechada, ele vai transmitir sua programação da Europa ou do Oriente Médio.

Tradução de Clara Allain

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