Descrição de chapéu talibã Ásia terrorismo

Afeganistão acorda na nova era do Talibã sob medo e incerteza

Emissoras fazem autocensura e param de tocar música com medo de ofender radicais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

No primeiro dia sem a presença de militares ocidentais em 20 anos no Afeganistão, o país acordou com medo e dúvidas acerca dos planos do renovado regime do Talibã.

Os EUA finalizaram sua retirada de Cabul um minuto antes da meia-noite da segunda (16h29 em Brasília), evitando entrar no dia limite anunciado pelo presidente Joe Biden para encerrar a operação.

Dois talibãs, um operando um iPhone, na cabine de comando de um C-130 da Força Aérea Afegã em Cabul
Dois talibãs, um deles com um iPhone, na cabine de comando de um avião de transporte C-130 Hércules da Força Aérea Afegã, em Cabul - Wakil Kohsar/AFP

"Houve tiros durante toda a madrugada, com os talibãs celebrando. Ninguém falou nada, mas a TV já não exibe programas musicais", contou, por mensagem eletrônica, um professor de inglês chamado Munir.

Como tantos outros, talvez 250 mil pessoas nas contas americanas, que trabalharam para forças ocidentais, ele pede anonimato e ainda tem esperança de fugir por terra para o Paquistão.

Pelo aeroporto da capital, a válvula de escape que registrou cenas de horror nas duas últimas semanas, o caminho está interditado. O local, último bastião ocidental em Cabul, foi ocupado pelo Talibã —apesar das promessas do grupo que retomou a cidade no dia 15, ninguém sabe quando e se haverá voos comerciais.

A segunda parte do relato de Munir se repete em todo o país. A agência de notícias Reuters ouviu pessoas em Jalalabad, Ghazni e outras cidades de maior porte. Em todas elas, emissoras de TV e de rádio exercem uma autocensura ao retirar programação que possa ofender os talibãs.

Assim, foram suspensas novelas turcas ou programas de auditório, o que se refletiu nas ruas, com os onipresentes salões de cabeleireiro tendo fotos de mulheres nas fachadas pintadas ou rasgadas.

Mas o fato é que ninguém sabe exatamente o que fazer. Em 2001, a burca permaneceu sendo usada em cidades como Cabul e Jalalabad, visitadas pela Folha quando o Talibã começou a retroceder sob bombas. As mulheres desconheciam as reais intenções dos então novos donos do poder.

Nos seus cinco anos de governo, interrompidos pela retaliação americana aos atentados do 11 de Setembro, promovidos pela Al Qaeda então escondida no Afeganistão, o Talibã impôs uma leitura radical da sharia, a lei islâmica.

Mulheres não tinham liberdades civis e precisavam usar a burca, a túnica tradicional pashtun, etnia do grupo. Homens precisavam deixar a barba crescer e eram espancados pela temida polícia do Ministério da Promoção da Virtude e da Prevenção do Vício.

Execuções eventuais, flagelamento e punições como amputação de mãos ocorriam com frequência, e minorias como os xiitas da etnia hazara ou os sikhs sofriam perseguições sistemáticas.

Até aqui, apesar de o Talibã prometer moderação, os sinais são preocupantes. A perseguição a gente como Munir é uma realidade bem documentada, e na capital espiritual do grupo, Kandahar, um decreto baniu música e apresentadoras mulheres de rádios. Cabul, no foco da mídia desde que os militantes a tomaram no dia 15, parecia mais um laboratório dessa versão "light" do Talibã.

Com a simbólica imagem do último militar americano deixando o país, o general Chris Donahue sob uma lente de visão noturna embarcando no derradeiro cargueiro C-17, sendo substituída por picapes lotadas de talibãs com uniformes americanos patrulhando a pista do aeroporto, a incerteza cresce.

O escrutínio ocidental após a retirada vai diminuir. Não é 1996, contudo, quando o país era uma grande ruína de guerra civil e não havia água corrente, eletricidade constante, internet ou telefonia móvel confiável. As comunicações, ainda que precárias, garantirão que relatos de gente como Munir cheguem ao resto do mundo. O que será feito deles é outra história.

No campo militar, além de completar a ocupação de um aeroporto com cerca de 140 peças de equipamento destruídas pelos americanos, entre aeronaves e blindados, o Talibã ainda enfrenta um bolsão de resistência 100 km a nordeste de Cabul.

É o vale de Panjshir, que nunca se rendeu ao grupo na sua primeira passagem pelo poder, sendo reduto de tadjiques e uzbeques étnicos. Segundo os rebeldes por lá, oito soldados do Talibã foram mortos após uma tentativa de invasão para testar suas defesas na entrada oeste do vale.

O grupo fundamentalista, que também terá de lidar com a presença do EI-K (Estado Islâmico Khorasan), filial afegã da organização terrorista, não comentou o caso.

O Talibã herdou um arsenal formidável para um grupo acostumado a usar fuzis e bombas improvisadas, incluindo muita munição, blindados e aeronaves que equipavam o Exército afegão e sua Força Aérea.

De Cabul, emergiram fotos de talibãs fazendo selfies na cabine de aeronaves, como um dos quatro C-130 Hércules dos afegãos. Segundo os EUA, esses aviões foram desabilitados para voo, provavelmente com retirada de software de controle e peças essenciais.

O mesmo não ocorreu país afora, embora haja a dúvida sobre quem poderia pilotar as aeronaves, já que boa parte dos aviadores do país fugiu no começo da crise, levando 46 aparelhos (inclusive talvez 14 aviões de ataque leve brasileiros Super Tucano) para o Uzbequistão.

Se o Talibã vai repetir na vida real a clássica cena em que rebeldes árabes não se entendem sobre como cuidar de detalhes como o saneamento na Damasco tomada dos turcos em "Lawrence da Arábia" (1962), isso é uma incógnita.

No Ocidente, o debate sobre culpas e recriminações sobre a forma com que a retirada foi feita continua. O chanceler britânico, Dominic Raab, negou ao Parlamento que Londres tenha forçado a manutenção do acesso ao portão Abbey, alvo de um mortífero atentado contra o aeroporto na quinta (26).

Já o conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, reafirmou em entrevista à rede ABC que o país agora manterá esforços diplomáticos para retirar os 100 ou 200 americanos que queriam deixar o Afeganistão e não conseguiram. O presidente irá falar sobre a evacuação na tarde desta terça.

Angela Merkel, a líder da Alemanha, por sua vez, disse que seu país buscaria auxiliar os refugiados da forma possível. Ao todo, a ação tirou cerca de 124 mil pessoas desde a noite do dia 14 de Cabul, a maioria afegã, e as Nações Unidas preveem um êxodo de até 500 mil fugitivos da volta do Talibã.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.