Descrição de chapéu talibã Ásia

Talibã mudou em 20 anos e é preciso negociar, diz ex-ministra britânica

Clare Short, que ocupou pasta do Desenvolvimento Internacional, defende engajamento ocidental com grupo extremista

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São Paulo

Quando o trabalhista Tony Blair venceu de forma arrasadora a eleição britânica de 1997, tornando-se premiê após 18 anos de governos conservadores, montou um gabinete repleto de figuras que exalavam energia e prometiam uma nova era na política.

Uma das faces mais carismáticas do “novo trabalhismo” era a deputada Clare Short, que ganhou uma função criada sob medida para acomodar seu entusiasmo: secretária de Desenvolvimento Internacional.

A ex-ministra britânica do Desenvolvimento Internacional Clare Short
A ex-ministra britânica do Desenvolvimento Internacional Clare Short - Brandon Payne - 6.out.16/Banco Mundial

À frente do novo departamento —equivalente a um ministério—, ela se tornou porta-voz de uma ambiciosa política externa que se propunha a ser mais idealista e solidária. Conseguiu aumentar o orçamento para assistência internacional e deu especial atenção a países africanos e asiáticos.

Short estava na posição nos atentados de 11 de Setembro de 2001 e participou da definição da estratégia do governo Blair nos ataques ao Talibã, insistindo para que o processo não contemplasse apenas a parte militar, mas também projetos de desenvolvimento.

Conhecida pelo temperamento forte, ela rompeu com seu chefe dois anos depois, inconformada com a invasão do Iraque, hoje considerada o maior erro político cometido por Blair.

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Short, 75, deixou de ser deputada em 2010, após 30 anos no Parlamento britânico. Hoje, dedica-se a projetos em instituições multilaterais. Por email, a ex-ministra diz que é preciso dar um crédito de confiança ao Talibã e negociar com o grupo fundamentalista, ao menos num primeiro momento.

Afirma também que a humilhação sofrida pelos EUA mostra que o país não aprendeu nada com fiascos anteriores. “Não há dúvida de que o Afeganistão é um fracasso humilhante. Para os EUA, vem após Vietnã e Iraque. A pergunta é: os EUA podem aprender? É extraordinário que não tenham conseguido.”

A sra. era secretária de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido em 11 de setembro de 2001 e durante o ataque ao Talibã. Como se sente com a volta do grupo ao poder? Fiquei no governo até 2003, quando renunciei devido à invasão do Iraque. Desde então já estava claro que a ocupação do Afeganistão havia fracassado. O Talibã progressivamente tomava mais território, e metade da população dependia de ajuda humanitária. O instinto inicial dos EUA [ao atacar o Afeganistão] foi de vingança, então seus motivos não foram claros desde o começo. A invasão foi um sucesso, e o Talibã derreteu após pouca luta. Hoje sabemos que o grupo quis negociar um acordo, mas os EUA não queriam conversar com eles. Esse foi o grande erro [dos americanos]. Deveriam ter declarado vitória e retirado os militares.

Apoio ao desenvolvimento deveria então ter sido providenciado para melhorar a vida das pessoas. Indo mais atrás, foi a política americana, com a ajuda dos sauditas, que instigou movimentos islâmicos e senhores da guerra a derrubar o governo progressista apoiado pelos soviéticos, para arrastar a União Soviética a uma situação do tipo Vietnã.

Que tipo de ameaça o retorno do Talibã representa para os direitos humanos no Afeganistão, especialmente das mulheres? O Talibã de agora é diferente do que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. Eles viajaram para fora e conheceram outros países muçulmanos. O Afeganistão também mudou em 20 anos, com mais pessoas educadas, incluindo meninas, e mulheres que trabalham em todos os níveis.

O Talibã prometeu que esses direitos para meninas e mulheres vão continuar. O tempo dirá, mas seria inteligente para a comunidade internacional engajar-se com eles, pois precisam de apoio econômico, caso contrário haverá um colapso catastrófico. Esta necessidade de ajuda significa influência para fazer o Talibã seguir normas internacionais.

A sra. acredita no Talibã quando promete ser mais moderado dessa vez? É preciso esperar para ver se as promessas de respeitar mulheres e meninas e governar de forma inclusiva serão honradas. Mas é muito mais provável que isso aconteça se todas as partes da comunidade internacional se engajarem com eles.

Como a sra. avalia o papel dos países ocidentais na ajuda ao Afeganistão desde 2001? Foi suficiente para melhorar a vida das pessoas? Houve alguns avanços significativos na vida de afegãos comuns. Mas também houve corrupção terrível, guerra e morte intermináveis. Não há dúvida de que o Afeganistão é um fracasso humilhante para EUA, Reino Unido e Otan [aliança militar ocidental]. Para os EUA, vem após os fracassos no Vietnã e no Iraque. A pergunta é: os EUA podem aprender? É extraordinário que não tenham conseguido.

Os militares americanos continuaram a apresentar relatórios otimistas para o Congresso sobre o progresso no Afeganistão, e na verdade eram totalmente enganosos e escondiam os problemas. Para o Reino Unido, que agora deixou a União Europeia e quer se agarrar mais fortemente à relação com os EUA, cria-se um problema quando os americanos fracassam de forma tão grande.

O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, com quem a sra. trabalhou, chamou a decisão dos EUA de sair do Afeganistão de “imbecil”. A sra. concorda? Os comentários de Tony Blair sobre a crise afegã foram extremamente tolos e expressos de forma rude. A lógica de sua posição é que os EUA deveriam permanecer no Afeganistão indefinidamente até haver a derrota completa. Não acredito que ele seja bem-vindo à Casa Branca novamente.

O presidente Joe Biden disse que a missão no Afeganistão nunca foi de construção de uma nação ou de criar instituições sólidas, e sim para remover a ameaça de novos ataques terroristas. A sra. enxerga esses objetivos como excludentes? A confusão sobre o que os EUA estavam tentando alcançar era uma parte grande do problema. Tentar promover desenvolvimento num país tão complicado quanto o Afeganistão por meios militares era algo que estava destinado ao fracasso. Os EUA gastaram US$ 1 trilhão, mas a maior parte não chegou às pessoas.

A sra. teme que o jihadismo global seja encorajado pela decisão de sair do Afeganistão, especialmente após as imagens de caos no aeroporto de Cabul? Não há dúvida de que será bastante impulsionado pelo fracasso dos EUA no Afeganistão.

Que tipo de assistência o Ocidente pode oferecer a afegãos comuns após esses eventos? Há uma crise humanitária e uma seca terrível gerando necessidades para metade da população do Afeganistão. O primeiro ponto é garantir apoio suficiente e que todas as pessoas necessitadas sejam alcançadas.

Além disso, instituições multilaterais devem estar disponíveis para se engajar com o Talibã a longo prazo para que institua um sistema de governança inclusiva que respeite os direitos das pessoas.

Que tipo de papel a sra. vê para ONU e ONGs? Serão chave em tentar assegurar a melhor transição possível para o governo do Talibã. Os EUA, o Reino Unido e outros que estiveram envolvidos no esforço militar no Afeganistão devem oferecer apoio generoso, por meio da ONU e de outras agências aceitáveis.

As ONGs são importantes para providenciar alívio humanitário. Mas é fundamental que esforços sejam feitos para incluir pessoas do Afeganistão na entrega e na distribuição da ajuda, em vez de que estrangeiros venham e depois saiam quando a crise imediata terminar e a capacidade local tiver sido enfraquecida, em vez de fortalecida.


Raio-x

Clare Short, 75

Graduada em ciência política pela Universidade de Leeds, foi deputada pelo Partido Trabalhista (1983-2006) e independente (2006-10); além de secretária de Desenvolvimento Internacional (1997-2003) e presidente da Iniciativa para a Transparência na Indústria Extrativa (2011-16). Hoje preside o conselho da Aliança das Cidades.

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