Sentimento coletivo de luto de afegãos dá lugar a receio diante da vida fora do país

Dezenas de milhares embarcaram em voos de retirada para o Qatar e aguardam em centros de processamento lotados

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Christina Goldbaum Najim Rahim
Qatar | The New York Times

Andando pela pista da base aérea militar americana de Al Udeid às 2h, uma afegã lançou-se sobre um aviador americano para tentar arrancar uma arma presa à perna dele. Enquanto outros militares corriam para contê-la, a mulher gritava e se debatia, decidida a se matar. Então se encolheu e começou a chorar.

Sua família foi dizimada durante a tomada-relâmpago do Afeganistão pelo Talibã, e ela mal conseguira embarcar num dos voos que retirou pessoas de Cabul. Agora ela estava a centenas de quilômetros de seu país —completamente sozinha. “Por favor, por favor”, suplicou, ofegante, enquanto as luzes laranjas e amarelas dos ônibus cheios de resgatados piscavam, iluminando seu rosto encharcado de lágrimas.

Militares americanos na Base Aérea de Al Udeid, no Qatar, embarcam migrantes afegãos em um avião C-17 Globemaster III - Kylie Barrow - 22.ago.21/Reuters

Desde que o Talibã tomou o poder no Afeganistão, o êxodo de afegãos ganhou força como uma enchente, inundando bases militares dos EUA em lugares como o Qatar, que nas últimas duas semanas recebeu dezenas de milhares de pessoas para triagem pelas autoridades americanas.

Mas enquanto as retiradas internacionais vão sendo encerradas, a atenção se volta ao destino daqueles que fazem parte do êxodo maciço, repentino e imprevisto. Em apenas duas semanas, mais de 5.000 militares americanos em Cabul ajudaram a resgatar mais de 114 mil pessoas, em um esforço caótico e em vários momentos violento, que reflete a velocidade espantosa com que o Talibã tomou conta do país.

Quando os insurgentes entraram na capital, Cabul, multidões de pessoas desesperadas se concentraram no aeroporto internacional da cidade, fazendo tudo para embarcar nos voos que levaram os resgatados. Ao desembarcar no Qatar, que vem cumprindo um papel crucial nesses esforços, alguns afegãos se ajoelharam em lágrimas, pensando haver chegado aos EUA.

A enxurrada de resgatados promete criar muitos problemas legais, burocráticos e logísticos. Muitos dos afegãos que embarcaram nos voos podem não cumprir os requisitos para serem reassentados nos EUA.

Aqueles que cumprem as condições correm o risco de sobrecarregar as organizações responsáveis por atender às necessidades básicas de refugiados recém-chegados ao país, tais como alojamento, alimentação e atendimento médico. Essas entidades normalmente acolhem apenas um fluxo pequeno e regular de refugiados recém-chegados.

Nos centros de processamento, o alívio das pessoas por terem escapado do Afeganistão sob controle do Talibã colide com as dificuldades de deixar seu país e recomeçar a vida. Em meio ao êxodo, o sentimento coletivo de luto de quem chora o que foi o Afeganistão no passado dá lugar ao receio das pessoas diante do que será de sua vida fora do país.

lá fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

“Quando penso em minha família, na situação dela, não fico mentalmente bem”, comentou Zahra, 28, que partiu na semana passada num voo para Doha, a capital do Qatar. “E quando chegarmos à América, não sabemos o que vai acontecer ali. Será que vamos encontrar um emprego, vamos nos assentar num lugar bom, vamos poder construir uma vida melhor?” Como outros que foram entrevistados para esta reportagem, ela pediu que fosse usado apenas seu primeiro nome, para evitar represálias.

Desde que chegou a Doha, Zahra vem repassando na cabeça o que um guarda do Talibã lhe disse: uma vez que saísse do país, ela nunca poderia retornar.

No Afeganistão, ela passou quase uma semana preparando-se para fugir, enquanto assistia à queda de diversas capitais provinciais em rápida sucessão. Então, dois dias depois de os insurgentes invadirem Cabul, ela correu para o aeroporto com sua mãe, seus irmãos e as famílias deles.

Eles passaram mais de uma hora suplicando a guardas do Talibã diante do portão do aeroporto até que os insurgentes os deixaram passar. Mas quando a multidão atrás dela avançou, ela ouviu os talibãs dando tiros no ar e sentiu a mão de sua mãe escapando. Quando se virou para olhar, viu os guardas do Talibã empurrando de volta o grupo atrás dela. Sua mãe e o resto de sua família foram engolidos pela multidão.

Apenas Zahra, seu cunhado e os filhos dele conseguiram passar pelo portão. Na semana passada, eles engrossaram as fileiras de milhares de outros afegãos que chegaram ao centro de processamento da base aérea de Al Udeid.

Dentro do hangar, crianças exaustas se espalhavam por uma colcha de retalhos de camas de acampar do Exército, algumas ostentando manchas deixadas por bebês necessitados de fraldas.

Com ar-condicionado em apenas parte do hangar, o ambiente era sufocante no calor de 46ºC. Garrafas plásticas e dejetos humanos se acumulavam nos cubículos dos banheiros. Colchões cobriam o chão nas tendas gigantes iluminadas com lâmpadas fluorescentes, e centenas de pessoas procuravam se acomodar. Um playground improvisado foi montado para as crianças do lado de fora das tendas.

Militares americanos sobrecarregados vêm trabalhando 24 horas por dia para oferecer atendimento médico, alimentos e água à enxurrada de recém-chegados, enquanto funcionários da imigração os submetem a triagem. Mas o fluxo inicial de afegãos superou a capacidade de triagem no local, levando ao receio de um desastre humanitário estar tomando forma nos centros de processamento.

O porta-voz do Pentágono, John F. Kirby, disse na terça-feira: “Seremos os primeiros a admitir que algumas condições em Al Udeid poderiam ter sido melhores”. Ele destacou que os problemas foram exacerbados “pelo número enorme de retirados e a rapidez com que chegaram”.

Para aliviar a pressão sobre o centro de estadia transitória em Doha, os militares americanos começaram a enviar afegãos a bases americanas na Alemanha, na Itália, na Espanha e no Bahrein, disse Kirby. Mais de cem banheiros adicionais foram instalados em Doha, além de serviços de faxina e entrega de refeições.

Depois de passarem horas –ou, em alguns casos, dias— em Al Udeid, muitos afegãos são transferidos para o acampamento As Sayliyah, antiga base do Exército em um subúrbio de Doha. O local inclui contêineres de transporte convertidos em alojamentos temporários.

O acampamento foi criado para ser usado no processo de meses de duração de triagem de afegãos que trabalharam para o governo americano e pediram vistos especiais de imigração –um grupo que, alguns meses atrás, não estava previsto para chegar a mais do que alguns milhares de pessoas.

Em vez disso, nos primeiros dias frenéticos sob o controle do Talibã, quando circularam rumores sobre aviões americanos estarem levando afegãos diretamente aos EUA, milhares de pessoas sem passaporte, visto ou documentos lotaram o aeroporto de Cabul e foram colocados em aviões rumo a Doha.

Mirwais, 31, chegou à base aérea no Qatar depois de embarcar num voo de retirada na semana passada. Antigo tradutor para forças americanas e organizações internacionais, ele se escondeu quando o Talibã entrou em Cabul e decidiu deixar o país quando insurgentes foram à casa de sua mãe à sua procura.

“A essa hora, se eu estivesse no Afeganistão, estaria morto”, afirmou. Mas disse que, a cada dia a mais que passa no acampamento, vai perdendo a esperança de começar uma vida melhor.

Depois de passar dias fazendo telefonemas desesperados a parentes para tentar organizar a saída de sua esposa e do filho de dez meses, Mirwais diz que praticamente perdeu a esperança de poder reencontrá-los fora do Afeganistão. E suas possibilidades de seguir viagem até os EUA estão longe de garantidas.

“Saí sem passaporte, sem documento algum”, disse. “Mas se eu não seguir até os EUA, o que será de mim? Como vou sustentar minha família?”

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.