Diplomatas negros veem Itamaraty mais diverso, mas relatam racismo velado

Órgão não tem dados do perfil racial da carreira; levantamento aponta que só 11% dos profissionais se dizem negros

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Rio de Janeiro

A carreira diplomática do Brasil ainda é bem pouco equilibrada em termos de diversidade racial. Ainda que funcionários negros do Itamaraty relatem avanços na tentativa de reduzir a desproporção com a parcela majoritária de colegas brancos, eles dizem ainda enfrentar obstáculos ligados ao racismo estrutural no país.

Oficialmente, o Ministério das Relações Exteriores não tem informações sobre o perfil racial dos diplomatas. Levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), porém, permite uma dimensão aproximada da situação. Em 2020, 11,7% desses profissionais se declaravam negros, enquanto 58,2% diziam ser brancos —e o quadro tem uma lacuna grande, dado que 28,2% não informaram a classificação racial.

O diplomata Bruno Santos de Oliveira, 42, afirma que ser negro em uma profissão pouco diversa impõe muitos desafios, e o maior deles é ter que provar competência acima da média para ocupar espaços de poder. "É algo que existe dentro e fora do Itamaraty, não é exclusivo da instituição. Trata-se de uma marca do nosso racismo estrutural."

No caso dele, as barreiras se mostraram quando ainda era criança. Certa vez, um médico perguntou o que ele seria quando crescesse. Ao responder que queria ser diplomata, ouviu: "Não vai ser isso, não. Ninguém vai aceitar você no Itamaraty".

Oliveira cresceu, estudou direito e relações internacionais e, após duas tentativas, contrariou a previsão: foi aprovado em 2007 no concurso do Instituto Rio Branco e hoje engrossa o número de negros na diplomacia brasileira. "Houve avanços. Hoje, consigo andar nos corredores e ver pessoas como eu. Mas o número ainda é pequeno", diz. "Nós somos mais de 50% da população e estamos muito longe disso no Itamaraty."

A diplomata Paula Gomes, 42, relata que servidores de outros órgãos já acharam algumas vezes que ela fosse funcionária de uma embaixada africana.

"Essas pessoas e o Itamaraty não pairam sobre a sociedade brasileira, são parte dela. E a sociedade brasileira é racista", diz. "Ela espera que quem ocupa posições de alguma projeção sejam pessoas brancas, não uma mulher negra."

Ainda que nunca tenha havido uma proibição formal à entrada de negros no Itamaraty, a socióloga Karla Gobo, que estuda a presença desse grupo na diplomacia brasileira, ressalta que a instituição sempre foi um lugar de difícil acesso para essa parcela da população.

"No império, havia a ideia de que a imagem do Brasil deveria representar uma elite europeia e, portanto, branca", diz. Nesse período, a seleção dos diplomatas se dava de forma personalista: "Eram selecionados os que estavam próximos à Corte".

A partir de 1946, a entrada na carreira passou a se dar mediante concurso público realizado pelo Instituto Rio Branco, mas, na prática, pouca coisa mudou. "As provas acabam selecionando o que um embaixador já se referiu como ‘a elite da elite’", afirma. "E a elite da elite no Brasil é branca." Só em 1961 o país teve seu primeiro embaixador negro em outro país —Raymundo Souza Dantas, indicado para o posto em Gana. E levaria mais 49 anos para o órgão ter seu primeiro embaixador de carreira negro, Benedicto Fonseca Filho.

Tido como um dos mais difíceis e competitivos do país, o concurso do Rio Branco tem hoje três etapas, nas quais são exigidos conhecimentos que vão de história mundial a política internacional. Gobo destaca a prova de inglês como um dos principais entraves ao ingresso de pessoas negras —algo semelhante ao que ocorre com alunos de escola pública no Exame Nacional do Ensino Médio.

Cerimônia de formatura da última turma de alunos do Instituto Rio Branco, que homenageou o diplomata José Jobim
Cerimônia de formatura da última turma de alunos do Instituto Rio Branco, que homenageou o diplomata José Jobim - Arthur Max - 1.set.21 /Divulgação Ministério das Relações Exteriores

"Muitas vezes, elas conseguem boas notas nas outras provas, mas o inglês é um gargalo."

O diplomata Jackson Lima, 51, destaca outras barreiras simbólicas, que vão além da seleção para o Rio Branco. "Eu não cresci vendo diplomatas negros, então a desconstrução interna, de entender que a gente pode realmente chegar lá é o primeiro grande desafio", conta.

Nascido na Bahia, ele trabalhou como ajudante de pedreiro e camelô, mas sempre quis ser diplomata. Como não tinha recursos para custear os estudos, deixou o desejo de lado. "Vinte anos depois, descobri as ações afirmativas e decidi tirar o sonho da gaveta."

O Itamaraty tem, desde 2002, um programa de ação afirmativa que concede bolsas para custear os estudos de candidatos negros. "Isso foi a pedra angular para minha aprovação. Sem ela, teria sido impossível passar", diz Lima.

Das 789 pessoas que entraram no Itamaraty entre 2002 e 2014, 20 foram negros contemplados pelas bolsas (2,5% do total). Já entre 2014 e 2020, ingressaram no corpo diplomático 127 pessoas, das quais 27 por meio das cotas raciais (elevando a proporção para 21,3%).

Hoje, Lima é uma das três pessoas negras que representam o Brasil em Washington —na primeira vez que o Itamaraty tem um trio de diplomatas negros na capital americana. "É um orgulho e uma responsabilidade muito grande", diz ele, que atua na missão do Brasil junto à OEA (Organização dos Estados Americanos).

Para a diplomata Rafaela Seixas, 34, a ação afirmativa também foi crucial. Com o dinheiro da bolsa, ela conseguiu fazer parte da preparação em um cursinho considerado de elite —no qual, porém, ela diz que não se sentia acolhida. "Quando eu chegava, algumas pessoas me olhavam estranho, como quem diz: ‘Essa menina é louca? Esse concurso não é para ela’."

A profissional também relata situações de preconceito velado no trabalho. Ao ser apresentada a uma servidora do Itamaraty, ela conta ter ouvido: "Seja bem-vinda. Sabia que tinha outra Rafaela aqui? Só que ela não era tão moreninha igual a você".

Apesar dos problemas, diz trabalhar por uma diplomacia mais diversa. "Em uma instituição que tem pessoas muito iguais, acho importante a gente ocupar esses espaços", diz Seixas. "Se é o brasileiro que paga nosso salário, é uma questão de justiça que esse povo esteja representado na alta burocracia."

Procurado pela Folha para falar sobre os casos de preconceito relatados, o Ministério das Relações Exteriores diz que condena qualquer forma de discriminação ou preconceito de raça, cor ou etnia. A pasta afirma que instituiu em 2017 a CPADIS (Comissão de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, Sexual e da Discriminação). Segundo o MRE, o órgão mantém reuniões periódicas para tratar de casos de assédio e discriminação.

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