Migrantes desesperados planejam atravessar Canal da Mancha, apesar dos perigos

Política de segurança na região recebe críticas e é apontada como alavanca para crescimento das redes de tráfico de pessoas

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Constant Méheut Norimitsu Onishi
Calais (França) | The New York Times

As luzes do lado oposto do Canal da Mancha estavam visíveis na quinta-feira (25), e isso encorajou o migrante Emanuel Malbah, que passou a última semana em um acampamento improvisado no litoral norte da França, sonhando em fazer a travessia. "Acho que não vou morrer", ele disse. "Acho que vou chegar à Inglaterra."

Depois de deixar seus países de origem no Oriente Médio e na África e seguir percursos longos atravessando a Europa, nada mais que um curso d’água estreito separa Malbah, 16, e outros migrantes de sua meta. Mas a estreiteza do Canal da Mancha é enganosa, como ficou claro na quarta (24), quando pelo menos 27 pessoas morreram numa tentativa fracassada de atravessar o canal num bote inflável precário.

Migrantes perto de uma fogueira para se aquecer em Loon Beach, região costeira da França perto de Calais - Johanna Geron - 25.nov.21/Reuters

Apesar das mortes –e o desastre da quarta foi um dos mais mortíferos dos últimos anos envolvendo migrantes na Europa–, na quinta Malbah e outras pessoas ainda aguardavam o melhor momento para sair correndo do mato com seus próprios botes e tentar chegar à praia.

O número de migrantes que se arriscam no Canal da Mancha aumentou fortemente nos últimos meses porque as autoridades dificultaram outras rotas para a Inglaterra, especialmente por caminhão passando pelo túnel por baixo do canal.

"Este é o novo Mediterrâneo", falou Malbah, que chegou a Calais há uma semana. Ele aludia ao cenário da crise de migrantes de 2015 que abalou a Europa.

Ele próprio partiu da Libéria, na África ocidental, mais de um ano atrás e fez a travessia traiçoeira do Mediterrâneo, chegando à Itália. Na quinta, ele estava falando numa área arborizada perto da praia onde dezenas de outros migrantes procuravam abrigar-se da chuva embaixo de lonas azuis e tentavam se aquecer em volta de uma fogueira.

Instigados pela tragédia no mar no dia anterior, líderes franceses e britânicos prometeram combater as travessias de migrantes pelo canal que separa seus dois países. Atribuíram o que aconteceu a quadrilhas organizadas de traficantes de pessoas e também responsabilizaram uns aos outros.

As mortes lembraram a todos que pouca coisa mudou nos cinco anos passados desde que as autoridades francesas desmontaram um grande acampamento de migrantes em Calais. Os dois países ainda lutam para controlar os migrantes na área, seguindo uma política que, para especialistas em imigração e organizações de defesa dos direitos de migrantes, submete os candidatos a asilo a perigo desnecessário.

As autoridades francesas confirmaram na quinta que crianças e uma mulher grávida estavam entre os migrantes afogados. Equipes de resgate trabalhavam sob o frio e o vento cortante para recuperar corpos e tentar identificar os mortos. Dois sobreviventes, um vindo do Iraque e outro da Somália, foram levados a um hospital francês com hipotermia grave.

O ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, disse que as autoridades acreditam que 30 pessoas estavam comprimidas numa embarcação que ele comparou a "uma piscina inflável de jardim".

O presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, conversaram ao telefone na quarta e disseram ter concordado em intensificar esforços para impedir migrantes de empreender a travessia de uma das rotas de transporte marítimo mais movimentadas do mundo. O Reino Unido atualmente dá dinheiro à França para ajudar a cobrir o custo de barrar as travessias através de vigilância e patrulhas.

Os dois países há tempo trocam acusações de fazer muito pouco para coibir as travessias, mas muitos especialistas em imigração e grupos de defesa dos direitos de migrantes dizem que as duas partes dividem a responsabilidade: sua abordagem consiste em dificultar ao máximo a situação dos migrantes, para desencorajá-los de partir rumo à Europa.

"A França cumpre funções para o Reino Unido como agente terceirizada, do mesmo modo que a Turquia faz com a Europa", disse o especialista em migração François Héran, do Collège de France, em Paris. "Por que a França permite que policiais britânicos atuem em solo francês para ajudar a barrar a imigração? É porque compartilhamos a mesma ideologia de que esses candidatos a asilo são indesejáveis."

No início da crise de migração na Europa, em 2015, o Canal da Mancha era visto como uma barreira intransponível. Suas correntes marítimas inconstantes e condições do tempo voláteis tornavam qualquer tentativa de travessia arriscada demais.

Em vez disso, muitos migrantes tentavam embarcar em caminhões que entravam no túnel sob o canal. Hoje, porém, a polícia patrulha regularmente as estradas que conduzem ao canal, e barreiras de arame farpado de quatro metros de altura se estendem por quilômetros ao longo de várias rotas de acesso a Calais. Tudo isso reduziu fortemente o número de migrantes que pegam carona em caminhões.

Pierre Roques, coordenador da ONG Auberge des Migrants, em Calais, disse que o litoral norte da França "foi militarizado" nos últimos anos. Para ele, "quanto mais segurança está presente, mais as redes de tráfico de pessoas crescem, porque os migrantes não conseguem mais atravessar por conta própria".

Vários migrantes sudaneses que faziam fila num centro de distribuição de alimentos na periferia de Calais contaram que a polícia frequentemente percorre seus acampamentos improvisados, às vezes agredindo-os com varas elétricas. Um relatório da Human Rights Watch divulgado em outubro descreveu como "sofrimento forçado" a tática de assediar migrantes para induzi-los a partir.

Os migrantes jogam um jogo de gato e rato com as autoridades. Malbah, o adolescente da Libéria, descreveu uma tentativa de travessia na terça (23) que teve que ser abortada porque o motor do bote inflável não deu partida. A polícia francesa apareceu logo depois e retalhou o barco.

Didier Leschi, diretor do Escritório de Imigração e Integração francês, atribuiu o aumento grande no número de travessias do canal –disse que às vezes acontecem até 50 por noite— a "uma espécie de profissionalismo mafioso" dos traficantes, que incentivam os migrantes a se lançarem ao mar, cobrando preços que variam de US$1.100 a US$2.800.

Leschi disse que a França precisaria de dezenas de milhares de policiais para monitorar a linha costeira quilométrica da qual partem os migrantes. Grupos de defesa dos direitos de migrantes disseram que, tirando a repressão, as autoridades pouco têm feito para enfrentar o aumento nas travessias por bote.

Alain Ledaguenel, presidente de uma organização privada que conduz resgates marítimos saindo de Dunquerque, o provável ponto de partida dos migrantes que morreram na quarta, disse que nos últimos meses sua equipe participou de três vezes mais resgates no mar. "Estamos soando o alarme há dois anos. Desde setembro a coisa não parou."

Num relatório em tom crítico lançado no mês passado, a Assembleia Nacional disse que a política do governo francês em relação aos migrantes tem sido um fracasso e leva à violação de seus direitos. Segundo o texto, 85% do dinheiro gasto pelos franceses e britânicos em 2020 para lidar com a população migrante no litoral francês foi usado para segurança e apenas 15% foi direcionado para a saúde e outros tipos de assistência.

Em Calais, os migrantes que querem chegar ao Reino Unido estão cada vez mais desesperados. Sassd Amian, 25, do Sudão do Sul, contou que tinha depositado suas esperanças nos caminhões que rumam para o túnel sob o Canal da Mancha.

Formado em arquitetura, Amian disse que seu sonho é chegar à Inglaterra, que descreveu como "um país forte, com educação de qualidade e onde se fala a língua inglesa". Ele contou que fugiu da guerra no Sudão do Sul quatro anos atrás e que, depois de escalas no Egito e na Líbia, encarou a travessia do Mediterrâneo para a Itália e a falta de comida e água.

Quando os caminhões passam por uma rotatória a caminho do túnel do canal, há um momento –apenas alguns segundos— em que uma pessoa pode tentar passar despercebida entre os eixos e encontrar um lugar para se esconder, disse Amian. Migrantes comentam que várias pessoas já perderam suas pernas nessa tentativa e alguns já morreram.

Mas, tendo chegado tão longe, Amian disse que não sente medo: "A morte não é novidade nenhuma nesta vida".

Tradução de Clara Allain

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