Descrição de chapéu Itamaraty

Negros enfrentam barreiras extras para ingressar em curso de relações internacionais

Conhecimento de outras línguas e distanciamento geográfico são obstáculos ao acesso à formação de diplomatas

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Guarulhos e São Paulo

Ainda que a ampliação das ações afirmativas tenha enegrecido salas de aula do ensino superior e aproximado o perfil dos alunos ao da maioria da população, o curso de relações internacionais, inaugurado no país há cinco décadas, continua descrito pela comunidade acadêmica como elitizado e pouco diverso.

Raio-x dos oito principais cursos ofertados no Brasil, segundo classificação do RUF (Ranking Universitário Folha), reflete a percepção. De 2017 a 2021, pretos e pardos representaram 31% dos ingressantes que declaram a própria raça, enquanto brancos preencheram 67% das vagas, mostra levantamento feito pela reportagem.

Quando ingressou em 2019 no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, universidade brasileira mais bem ranqueada na área, Pedro Vitor Rodrigues da Silva, 20, deparou-se com esse cenário. "Minha turma acabou sendo um pouco mais diversa —mas nem tanto."

O estudante Pedro Vitor Rodrigues da Silva, 20, no Centro de Difusão Internacional da USP, que abriga a biblioteca do curso de RI - Eduardo Knapp/Folhapress

Nascido e crescido no bairro de Americanópolis, no sul da capital paulista, o estudante integra a quarta turma que ingressou no instituto com a disponibilidade de cotas. As ações afirmativas passaram a ser adotadas via Sisu (Sistema de Seleção Unificada) no curso em 2016, e em 2019 a Fuvest —vestibular pelo qual Pedro entrou— reservou vagas para pretos, pardos e indígenas.

Nos últimos cinco anos, já com cotas, o curso de relações internacionais da instituição teve média de 28,8% de ingressantes negros. Brancos continuam formando a robusta maioria de 65,3%. "Conversando com colegas de anos anteriores, deu para ter uma noção de como era a USP antes das cotas. Mas ainda é um lugar bem branco", diz Pedro.

A média de alunos negros no curso da USP a coloca atrás de outras universidades, em especial das instituições federais. Ainda assim, esse grupo, que representa 54,2% da população brasileira, de acordo com os dados mais recentes da Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio), raramente representa mais da metade dos ingressantes em RI.

A Universidade de Brasília (UnB) é a que mais se destaca. De todo o período, só em 2021 (ano no qual houve ingressantes apenas no primeiro semestre) o percentual fugiu à regra: os negros representaram 24,1%. Nos demais anos, o índice mais baixo registrado foi de 50,5% em 2017, e o mais alto, de 63,1%, em 2018.

Na outra ponta está a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), que no período analisado nunca teve mais do que 30% dos ingressantes autodeclarados negros. A instituição, que não conta com sistema de cotas, aderiu em 2005 ao Prouni (Programa Universidade para Todos).

A Universidade Estadual Paulista (Unesp), que conta com sistema de cotas e foi pioneira no estado em ações afirmativas, ainda possui baixa representatividade, com uma média de 25,3% de negros, pouco à frente da PUC-Minas (24,9%).

Pedro, que quer seguir a carreira de diplomata e sonha em ocupar um posto no Oriente Médio, declara-se pardo. "Eu nunca vou ser privilegiado como uma pessoa branca, mas, ao mesmo tempo, não vou sofrer os mesmos traumas que uma pessoa com pigmentação mais escura vai sofrer."

Quando se matriculou na USP, ele trabalhava na Emae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia), em uma rotina puxada: saía de casa às 7h para o trabalho e retornava à 1h da faculdade. Para conseguir acompanhar os estudos, porém, precisou largar o trabalho pouco depois.

Ainda que tenha sentido algumas desvantagens em relação aos colegas, Pedro começou o curso com um diferencial que, para muitos, é uma barreira: o conhecimento de outras línguas. O irmão do estudante é professor de inglês e, por isso, ele conseguiu bolsa em uma escola de ensino de idiomas.

Professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Flavio Thales Ribeiro Francisco cita o inglês e a falta de iniciativas regulares e gratuitas para o ensino de idiomas nas universidades como dois fatores-chave a afastar alunos negros oriundos de famílias de média e baixa renda do curso. "Mas existem também outros gargalos que antecedem o vestibular", diz.

O primeiro seria a desinformação em torno da área, o que comprometeria inclusive a inscrição de vestibulandos para preencher vagas reservadas pelas cotas. "Poucos alunos têm conhecimento do significado de relações internacionais e quais profissões uma pessoa que faz esse curso pode seguir."

Outro problema é a pouca frequência com que questões raciais são discutidas na grade tradicional do curso. "Como há uma abordagem Estadocêntrica, sobre diplomacia presidencial e papel dos diplomatas, temas de relações raciais acabam marginalizados", diz.

A professora da pós-graduação em RI da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Karine de Souza Silva concorda. Para ela, parte do problema reside na composição majoritariamente branca dos quadros docentes da área. "Somos poucas e poucos. Aqui, sou a única professora negra", afirma. "Temos cursos brancocentrados não só na composição docente, mas também na de autoras e autores do plano de ensino."

Segundo a professora, as origens da disciplina também são um gargalo na atração de estudantes negros. O curso de relações internacionais surgiu na década de 1970, em Brasília, e se espalhou para o eixo Rio-São Paulo. "Pardos, pretos e indígenas no Norte e no Nordeste têm dificuldade para ingressar em cursos de outras regiões", diz Silva.

Os cerca de 150 cursos hoje ativos no Brasil estão distribuídos de forma irregular pelo território, com 55% na região Sudeste e 21% na região Sul. Enquanto São Paulo tem 47 cursos disponíveis, estados como Ceará e Rio Grande do Norte contam com apenas um, segundo a pesquisadora Marrielle Maia, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Depois de vencer as barreiras do curso em si, aqueles que desejam seguir carreira de diplomata enfrentam ainda um dos mais prestigiados e concorridos concursos do país, o do Instituto Rio Branco.

O Itamaraty não dispõe do número de negros na carreira diplomática, pois a autodeclaração não é exigida ao ingressar no órgão. Desde 2014, no entanto, nos seis concursos realizados —o de 2020 foi adiado, devido à pandemia—, 37 candidatos negros foram aprovados, dos quais 32 em vagas de cotas e 5 nas destinadas à ampla concorrência.

A lei de cotas, um mecanismo federal, foi implementada no concurso a partir de 2015 e seguida à risca em todas as edições, ou seja, com 20% das vagas ocupadas por negros que concorrem por ações afirmativas.

Apesar de não ser possível afirmar se os números refletem a verdadeira composição racial dos ingressantes, o percentual ainda está longe da realidade populacional brasileira.

O prestígio do concurso perpassa ainda pela glamorização da área, pontua Silva. "Uma das barreiras é pensar que a área requer sempre que a pessoa seja poliglota", diz, em referência à exigência de conhecimentos de francês, inglês e espanhol para as provas. "Mas, em se tratando do Itamaraty, estamos falando de política pública, algo que não deveria ser glamorizado."

Neste ano a prova de inglês do concurso para o Rio Branco foi amplamente questionada devido à falta de transparência quanto aos critérios de correção —o que gerou, inclusive, uma representação do Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) junto ao Ministério Público Federal.

Na denúncia contra a banca corretora do Instituto Americano de Desenvolvimento (Iades), que aplica a prova, o grupo aponta que, no resultado da segunda fase, 137 candidatos, de um total de 255, foram eliminados. A peça indica ainda que candidatos que disputavam as vagas reservadas pelas cotas foram mais prejudicados do que os de ampla concorrência, com a eliminação de 79% dos concorrentes, ante média geral de 53,7%.

A ação ainda tramita na Procuradoria da República do Distrito Federal, mas as nomeações deste ano já começaram. Caso a Justiça entenda que houve alguma irregularidade na aplicação do exame, mais candidatos podem ser nomeados, mas não há prazo definido para uma conclusão.

Por outro lado, desde 2002 o Itamaraty oferece uma Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia para negros, em que os selecionados recebem um valor a partir de concorrência em edital para se dedicar aos estudos. Nos 19 anos do programa, 20 beneficiados com a bolsa ingressaram no Rio Branco.

Ainda que caminhe a passos lentos, a presença de negros nas relações internacionais tem ajudado a combater estereótipos atrelados às cotas. Relatório elaborado pelo professor Felipe Loureiro, presidente da Comissão de Graduação do IRI-USP, mostra que o desempenho de alunos cotistas é equivalente ao dos que ingressam por ampla concorrência.

O levantamento conclui ainda que a média dos alunos beneficiados pelas ações afirmativas é semelhante à de alunos não cotistas e que a taxa de evasão do primeiro grupo é menor que a do segundo.

Apesar do cenário desigual, Francisco, da UFABC, vê avanços na área, como a formação de uma primeira geração de pesquisadores negros beneficiada pelas cotas. "Isso possibilita que alunos como eu, que não são egressos da classe média, consigam trabalhar mais na área de pesquisa."

Já Silva, da UFSC, identifica um movimento de descolonização das instituições de ensino, impulsionado pelos ativismos negro e indígena, que ganhou tração e tem mudado a realidade de cursos como o de RI. "Chegamos a um ponto de não retorno. As pessoas negras também estão buscando letramento racial e, hoje, determinadas coisas que víamos no passado não vão mais passar."

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