Redes de farmácias contribuíram para crise de opioides nos EUA, diz Justiça

Mortes por overdose passaram de 100 mil em um ano no país

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Jan Hoffman
The New York Times

Em um caso-teste observado atentamente, um júri federal em Cleveland concluiu nesta terça-feira (23) que as três maiores redes de farmácias dos Estados Unidos —CVS Health, Walmart e Walgreens— contribuíram de forma importante para a crise de overdoses e mortes por opioides em dois condados de Ohio. Foi a primeira vez que o segmento de varejo da indústria de medicamentos foi responsabilizado nessa epidemia que já dura décadas.

O juiz do caso vai determinar quanto cada companhia deverá pagar aos condados, depois de audiências ainda não marcadas. Novos dados federais divulgados na semana passada mostram que as mortes por dose excessiva de opioides ilegais, como heroína e fentanil pirateado, atingiram níveis recordes durante a pandemia de Covid-19.

Agente da DEA descarrega caixas de prescrições de opioides em estabelecimento de Los Angeles
Agente da DEA descarrega caixas de prescrições de opioides em estabelecimento de Los Angeles - Patrick T. Fallon - 24.abr.21/AFP

O veredicto —o primeiro de um júri em um caso de opioides— foi encorajador para os autores em milhares de processos legais nos Estados Unidos, que contam com a mesma estratégia jurídica empregada neste caso, de que as companhias farmacêuticas contribuíram para uma "perturbação pública" —uma figura jurídica que, segundo os autores, cobre a crise de saúde pública criada pelos opioides.

"Há décadas as redes de farmácias viam as pílulas que escorriam por suas portas causarem danos, e não tomaram medidas como exigido por lei", disseram os advogados dos dois condados, juntamente com advogados de governos locais de todo o país, em uma declaração depois do veredicto.

"O julgamento de hoje contra Walmart, Walgreens e CVS representa o reconhecimento atrasado de sua cumplicidade na criação de perturbações públicas", disse a declaração.

O argumento de perturbação pública foi rejeitado duas vezes no início deste mês, por juízes na Califórnia e em Oklahoma, em casos contra fabricantes de opioides. Os juízes decidiram que as atividades das empresas estavam muito distantes das overdoses e das mortes, e que a aplicação da lei de perturbação pública tinha sido forçada além do plausível.

Mas neste caso, apresentado pelos condados de Lake e Trumbull, no nordeste de Ohio, os advogados usaram a teoria jurídica com sucesso. Eles afirmaram que durante anos as farmácias fizeram vista grossa para inúmeros sinais de advertência sobre pedidos de opioides suspeitos, tanto no balcão com pacientes como em sedes corporativas, cuja supervisão foi "muito pouca e muito tardia", segundo Mark Lainer, principal advogado dos condados.

O júri de 12 membros deliberou durante cinco dias e meio depois de um julgamento de seis semanas.

Os ricos varejistas foram o último núcleo de corporações farmacêuticas a ser processadas na Justiça, e os mais resistentes a negociar acordos amplos. Até hoje elas enfrentaram menos processos legais do que outras farmacêuticas.

No último verão, Walgreens, Rite Aid, CVS Health e Walmart fecharam acordos com dois condados de Nova York, Nassau e Suffolk, por US$ 26 milhões ao todo. No caso de Ohio, a Rite Aid e a Giant Eagle, uma rede regional, fizeram acordos mais cedo, por somas não reveladas.

Em comparação, vários fabricantes e distribuidores de opioides comprometeram bilhões de dólares em ofertas de acordos, alguns nacionais.

A CVS e a Walgreens imediatamente disseram que vão apelar do veredicto, e a Walmart deverá fazer o mesmo. "Os farmacêuticos atendem a prescrições legais escritas por médicos licenciados pela Agência de Repressão a Drogas [DEA] que prescrevem substâncias legais, aprovadas pela Agência de Alimentos e Drogas [FDA] para tratar pacientes reais necessitados", disse a CVS em um comunicado.

A declaração continuou: "Nós esperamos que o tribunal de apelações reveja este caso, incluindo a aplicação da lei de perturbação pública".

O júri teve de decidir primeiro se o fornecimento excessivo de medicamentos sob prescrição e subsequente desvio ilegal criou uma perturbação pública em cada condado.

Sob a lei de perturbação pública, uma crise deve ser continuada. Mas nos últimos anos o número de prescrições de opioides tinha diminuído, em grande parte por causa da maior supervisão de programas estaduais e federais, diretrizes revisadas para médicos e compliance corporativa.

Os advogados dos condados argumentaram com sucesso que quando o fornecimento caiu os pacientes que eram viciados recorreram à heroína e ao uso ilegal de fentanil. Esse resultado era previsível, consequência direta das inundações de opioides sob prescrição, segundo os advogados.

Depois que os jurados concluíram que havia uma "perturbação pública" relacionada à crise de opioides nos condados, eles passaram para uma segunda questão. Cada rede de farmácias se envolveu em conduta que foi "intencional" ou "ilegal", contribuindo de forma substancial para a perturbação pública da crise de opioides?

Nesse caso, de acordo com a lei, os réus devem pagar para "atenuar" a "perturbação" que eles exacerbaram.

Assim como decisões do júri em casos criminais, o veredicto neste caso civil tinha de ser unânime. Mas o júri só precisou aplicar "o maior peso de evidências" (pelo menos 51%) como padrão de prova, o que é menor que o nível de "além de dúvida razoável" necessário para produzir um veredicto de culpado em julgamentos criminais.

Os advogados das farmácias responderam com argumentos que os tribunais de apelação ainda poderão considerar plausíveis. O número de suas lojas representa uma fração das farmácias, hospitais e clínicas que prescrevem opioides nos dois condados, disseram eles, e a quantidade de pílulas que elas prescreveram foi mensuravelmente menor. Autoridades judiciais, que detiveram o proprietário de uma farmácia independente no condado por dispensar quantidades preocupantes de opioides de alta dosagem, não citaram qualquer das redes de farmácias dos condados.

Havia razões demais para a explosão de opioides nos dois condados para pôr a culpa de modo tão retumbante nas farmácias, alegaram seus advogados. Eles indicaram gabinetes de remédios das famílias, o repositório de tantas pílulas não usadas, como centros de diversão ilegal; os cartéis de drogas; os fabricantes, que persuadiram os médicos e exageraram nos benefícios dos opioides, minimizando seus riscos; e médicos que, pressionados a tratar a dor de modo mais agressivo, cada vez mais encomendavam quantidades maiores e mais potentes.

"Todos sabemos que são os prescritores que controlam a demanda", disse Brian Swanson, advogado da Walgreens. "Os farmacêuticos não geram demanda."

Os advogados dos réus repetidamente apontaram o dedo para as autoridades federais. Não apenas as drogas foram aprovadas pela FDA, disseram eles, como a DEA também tinha responsabilidade pelas enormes quantidades. Os reguladores federais definiram o limite anual de quantos opioides podem ser produzidos no país, o qual eles continuaram aumentando durante 2021.

Em seus comentários finais, Lanier reconheceu que muitos fatores contribuíram para essa crise. Mas as farmácias não podiam escapar da responsabilidade, afirmou, dizendo que só colocam quantidades relativamente pequenas de opioides nos condados (e ele rejeitou o método de cálculo da defesa).

Se esse veredicto vai sobreviver na apelação não se sabe. Além das muitas questões jurídicas que surgem do caso, os réus deverão continuar suas críticas ao juiz Dan Aaron Polster, que presidiu o julgamento e há anos supervisiona a agregação de milhares de processos de opioides.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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