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Vacinação na África emperra com doses de validade curta, descrença em governos e trauma colonial

Com baixos índices de imunização, continente vive apartheid vacinal, diz OMS

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São Paulo

A descoberta da variante ômicron por cientistas da África do Sul chamou a atenção do mundo para um problema que vem sendo alardeado há meses pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

A desigualdade no acesso à vacinação entre países ricos e pobres tem potencial de adiar o fim da pandemia no mundo, com o risco de surgirem novas variantes mais resistentes —ainda que não se saiba se a ômicron se originou no país africano ou apenas foi identificada lá.

A concentração das doses em países ricos, chamada de "apartheid vacinal" e "fracasso moral" pelo diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, é ainda um dos principais entraves. Mas não é o único, e, especialmente nos últimos meses, alguns países vivem o problema oposto: excesso de doses e dificuldade para fazê-las chegar aos braços das pessoas, seja por entraves logísticos, seja por resistência de parte da população.

Profissionais de saúde preparam doses de vacina anti-Covid em Durban, na África do Sul
Profissionais de saúde preparam doses de vacina anti-Covid em Durban, na África do Sul - Rajesh Jantilal - 24.set.21/ AFP

Além de um aumento de doações via acordos bilaterais ou por programas como o Covax (consórcio busca distribuição mais equitativa da vacina), farmacêuticas têm vendido doses com desconto, e em alguns países pobres custaria menos de 1% do PIB imunizar todos os adultos, diz o New York Times.

Dos dez países com maior PIB per capita da África Subsaariana, sete têm taxas de vacinação abaixo da média mundial —entre os quais África do Sul, Botsuana, Gabão, Namíbia e Angola.

No entanto, no último dia 24 de novembro, o governo da África do Sul pediu a dois fabricantes que adiassem a entrega de doses adquiridas porque está com excesso de estoque. Com 24% da população totalmente vacinada, o país de 60 milhões de habitantes tinha 16 milhões de doses armazenadas.

Namíbia, Zimbábue, Moçambique e Maláui também pediram um tempo no envio de vacinas, muitas delas doadas. "Eles não querem desperdiçar doses que podem expirar. Agora, governos analisam a possibilidade de tornar a vacinação obrigatória", diz Sibusiso Nkomo, chefe de comunicação do instituto Afrobarometer.

A Namíbia chegou a anunciar que pode ser obrigada a destruir mais de 268 mil doses se não aumentar o ritmo de vacinação. Assim, uma das barreiras para distribuir a vacina está relacionada não à quantidade, mas à "qualidade" das doações. Na segunda-feira (29), um comunicado do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da África pede aos doadores mais planejamento.

"As doações têm sido pontuais, fornecidas com pouca antecedência e prazos curtos de validade. Isso tornou extremamente desafiador para os países planejarem campanhas de vacinação", diz o texto.

A carta pede que doadores e fabricantes se comprometam a enviar vacinas com validade mínima de dez semanas, liberem mais doses por vez, reduzindo custos de transação, e enviem seringas e suprimentos.

"Os países precisam de suprimentos previsíveis e confiáveis. Ter que planejar em curto prazo e garantir a aplicação de doses com vida útil curta aumenta a carga logística sobre sistemas já sobrecarregados."

Outro fator para a lentidão é a resistência à vacina. É o mesmo problema vivido na Europa e nos Estados Unidos, mas especialistas veem na África mais uma apatia relacionada a décadas de exploração do que o lobby antivax decorrente da polarização política que pode ser visto entre os americanos, por exemplo.

Outra diferença é que, além da difusão de fake news, contribui para a hesitação vacinal na África a desconfiança de tratamentos de saúde vindos de fora, devido ao trauma coletivo dos experimentos médicos da época do colonialismo —das esterilizações forçadas e infecções propositais por doenças no início do século 20 às pesquisas antiéticas de farmacêuticas nos anos 1990.

Segundo um estudo feito em 15 países africanos em 2020, 49% dos entrevistados disseram acreditar que a Covid-19 foi planejada por um país estrangeiro, e 45%, que os africanos são usados como "ratos de laboratório" nos testes de vacinas. Fatores políticos internos também minaram a confiança dos africanos. O Afrobarometer mostrou que aqueles que não confiam em seu governo têm dez vezes menos chance de querer a vacina. Em Gana, 40% dos que não pretendem se vacinar citaram esse fator como causa.

Na África do Sul, uma fraude em contratos de comunicação obrigou o ministro da Saúde a renunciar em plena pandemia. "As pessoas estão preocupadas com efeitos colaterais da vacina, mas não é só isso", diz Mia Malan, diretora-executiva do Centro de Jornalismo em Saúde Bhekisisa, da África do Sul. "O mesmo governo envolvido em escândalos de corrupção dirige as campanhas de vacinação. Muitos não confiam."

Segundo Malan, o desvio de verba deixou o Ministério da Saúde sem dinheiro para campanhas pró-vacina. Para ela, a obrigatoriedade da imunização no setor privado deve aumentar a adesão aos fármacos.

A dependência quase total da África da importação de vacinas —só 1% das doses aplicadas é produzida no continente— é outro problema. Investir na produção local de imunizantes e de matéria-prima é apontado como um caminho para melhorar o acesso dos africanos à proteção, ainda que não de imediato.

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