Descrição de chapéu Coronavírus

Oportunismo da direita amplia rejeição à vacina nos EUA, diz historiador

Professor de Harvard, Sidney Chalhoub publica ensaio em que analisa resistência à imunização ao longo da história

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Mulher e dois médicos se preparam para vacinar uma criança em gravura do século 19, que está na nova edição da Serrote Reprodução

Naief Haddad

Repórter especial da Folha

[RESUMO] Em entrevista à Folha, historiador Sidney Chaloub, professor da Unicamp e de Harvard, aponta que incidentes com vacinas nas últimas décadas, organização privada do sistema de saúde e influência de políticos de extrema direita explicam a maior resistência à vacinação contra a Covid-19 nos EUA que no Brasil.

O americano Matthew McConaughey, de filmes como "Interestelar" e "Clube de Compras Dallas", que deu a ele o Oscar de melhor ator em 2014, está em dúvida se sua menina e seus dois garotos devem tomar a vacina contra a Covid-19.

McConaughey, 52, e sua mulher, a modelo brasileira Camila Alves, 39, já foram imunizados, mas os filhos do casal —Levi, 13, Vida, 11, e Livingston, 8— ainda não. "Ainda quero ter mais informações", disse o ator recentemente. Bem, bastaria perguntar a um infectologista pediátrico —se o médico for sério, dirá a McConaughey que crianças e adolescentes podem e devem se vacinar.

O caso de McConaughey e sua família é revelador do que se passa em solo americano.

Os EUA começaram a imunizar sua população em dezembro do ano passado, mais de um mês antes dos brasileiros. Ao longo desse período, prevaleceu a abundância de doses à disposição dos americanos, em contraste com a instabilidade de fornecimento no Brasil.

À frente da Casa Branca, Joe Biden, que já tomou a dose de reforço, determinou semanas atrás a obrigatoriedade da vacinação para funcionários de todas as empresas com mais de cem trabalhadores e tem promovido outras ações para estimular o avanço da imunização.

Por sua vez, Jair Bolsonaro, que ainda não se vacinou, associou a vacina contra a Covid-19 à Aids e se mantém no ataque a iniciativas como a exigência do passaporte da vacina.

Dadas as diferenças de oferta de vacina e de postura dos líderes, seria de se esperar percentuais do primeiro ciclo completo de imunização bem distintos, mas não é o que acontece. Segundo o Our World in Data, projeto da Universidade de Oxford, na Inglaterra, na quinta-feira (11) os EUA tinham 58,6% da população com essa fase concluída, número exatamente igual ao do Brasil no mesmo dia.

Considerando os gráficos dos últimos três meses, que registram uma forte aceleração aqui e um avanço modesto lá, é provável que ultrapassemos os americanos nesse quesito —uma boa notícia, enfim.

​Estados americanos como Alabama e Tennessee ainda não alcançaram metade da população com imunização completa. O Texas, onde nasceu McConaughey, tem 54%.

Bem melhor está Massachusetts, onde fica a Universidade Harvard, com 70%, mesmo patamar de São Paulo. Quem traz à tona a comparação entre esses dois estados é o historiador Sidney Chalhoub. Não é à toa: são as duas regiões onde ele mora.

Chalhoub costuma passar alguns meses em Campinas, cidade paulista onde está a Unicamp, universidade em que lecionou ao longo de três décadas, e vive a maior parte do ano em Cambridge, onde é professor dos departamentos de história e estudos africanos e afroamericanos de Harvard desde 2015.

Com a disseminação da Covid-19 mundo afora, Chalhoub decidiu se aprofundar nas pesquisas sobre as epidemias e as formas que as sociedades têm encontrado para combatê-las ao longo da história, especialmente no Brasil, nos EUA e na Europa.

Preparou um longo ensaio, que foi publicado como posfácio de "História e Descrição da Febre Amarela Epidêmica que Grassou no Rio de Janeiro em 1850", de José Pereira Rego (1816-1892), o barão do Lavradio. Discutiu no texto temas como a influência da homeopatia e a associação, corrente à época, entre raça e suscetibilidade diferenciada a doenças, especialmente a febre amarela. Editado pela Chão, o livro foi lançado em janeiro deste ano.

Nos meses seguintes, as inquietações nessa seara acompanharam Chalhoub, que percebia semelhanças no impacto da Covid nos EUA e no Brasil, mas notava divergências em relação à vacinação. É esse descompasso na resistência à imunização nos dois países um dos pontos centrais do ensaio "Vacina: História, Ciência e Negacionismo", que está na nova edição da Serrote, revista quadrimestral do Instituto Moreira Salles.

Sidney Chalhoub, professor dos departamentos de história e estudos africanos e afroamericanos da Universidade Harvard - Lucas Koutsoukos Chalhoub/Divulgação

A live de lançamento da revista acontece na quinta-feira (18), às 18h, com participação de Chalhoub e da também historiadora Heloisa Starling, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Segundo ele, são três as hipóteses principais que explicam os EUA à frente do Brasil na corrida do negacionismo. Para começar, diz Chalhoub, existe uma tradição sólida de ceticismo dos americanos, baseada em acontecimentos que "complicaram a história da imunização no século 20", apesar de tantos avanços científicos nesse período.

Um desses episódios envolve a Salk, vacina contra a poliomielite. Em 1955, um dos laboratórios que preparavam o imunizante cometeu um erro grave durante a produção das doses, levando milhares de americanos a desenvolver a doença e provocando a morte de pelo menos dez crianças.

"O ‘Incidente Cutter’ (nome do laboratório) é o marco zero da desconfiança de boa parte do público norte-americano, forte hoje em dia, em relação à indústria farmacêutica", escreve o historiador.

Casos de menor gravidade, mas de ampla repercussão, envolvendo outras doenças, como a gripe suína, deram fôlego aos argumentos anti-imunização nas décadas seguintes.

É comum que haja um percurso, às vezes longo e tortuoso, cheio de idas e vindas, entre determinada descoberta científica e a aplicação dela para beneficiar a população. Sem a pressão de movimentos sociais diversos e seus ativistas, o trabalho de informação de jornalistas, o empenho de certos políticos, o engajamento de cientistas além dos laboratórios, a educação de grande parte da população, a crítica constante de cientistas sociais, humanistas e artistas – sem isso tudo, seria difícil imaginar que o benefício de certos avanços científicos se espraiasse além de setores sociais privilegiados para causar a grande transformação quanto à expectativa de vida que impacta agora a humanidade inteira

Sidney Chalhoub

trecho do ensaio "Vacina: História, Ciência e Negacionismo", um dos destaques da nova edição da revista Serrote

Um segundo aspecto indicado por ele é a organização dos sistemas de saúde. "Vacina nos EUA sempre foi assunto privado. Você vai ao médico particular e paga pela vacina ou ela é paga pelo seguro-saúde. Por isso, muitas crianças americanas pobres não são imunizadas", diz.

"Por outro lado, no Brasil, o acesso à vacina é um direito universal. O Programa Nacional de Imunização (PNI), lançado em 1973, deu muito certo e acostumou as pessoas com a vacinação. A população se tornou mais maleável, quer dizer, mais disposta a receber esses serviços do Estado, sem desconfiar, sem achar que é uma intrusão do governo."

É certo que a atual pandemia deslocou essas constantes, com a distribuição gratuita e em larga escala de Pfizer, Moderna e Janssen nos EUA e com a excelência do PNI fortemente comprometida pelo governo Bolsonaro. Ainda assim, são décadas de tradição pública (aqui) e privada (lá), que talvez resistam às mudanças decorrentes dos tempos sombrios de coronavírus.

O terceiro ponto levantado por Chalhoub recai sobre a ação da extrema direita na política contemporânea.

Desde a metade do século 19, existe entre boa parte dos americanos "a repulsa à ideia de que governos centrais pudessem determinar o que os cidadãos deveriam fazer em situações de emergência sanitária, ameaçando liberdades individuais", escreve o autor.

É um sentimento que também esteve presente, em meio a tantos outros, na Revolta da Vacina no Rio de Janeiro, em 1904. Rui Barbosa foi um dos intelectuais que se apoiaram em ideias como essa para se opor fortemente à imunização compulsória.

De volta aos EUA. Nos últimos anos, houve uma exacerbação dessa desconfiança. "A situação tem se tornado mais grave por causa de figuras como Trump, que faz um discurso de suspeita em relação às Big Pharma e em relação à ação do Estado quando inocula as pessoas, quando obriga as crianças a se vacinarem para irem à escola. Existe um oportunismo dessa direita mais radical ao propagar que os democratas querem que o Estado entre em sua casa e diga tudo o que você tem que fazer. Assim, eles politizam a vacina", afirma.

Chalhoub continua: "A polarização política nos EUA é tão vertical que leva grande parte das pessoas favoráveis ao Trump a não procurar a vacina —e uma vez trumpista, sempre trumpista. Isso não acontece no Brasil. Muitos que votaram no Bolsonaro estão se imunizando. Não existe essa rigidez ideológica".

O historiador conta que foi a oportunidade desperdiçada pelo Brasil que o levou, em grande parte, a se dedicar a esse ensaio. "Não havendo uma resistência arraigada à imunização no país, bastaria bom senso para encontrar vacina logo no início, quando elas começaram a aparecer. Foram meses perdidos."

Na última quarta-feira (10), o Brasil chegou a 610 mil mortes por Covid. Um dia antes, senadores demonstravam preocupação com a possível falta de vacinas para uma nova rodada de imunização em 2022.

Live de lançamento da revista Serrote

Na quinta-feira (18), às 18h, os historiadores Sidney Chalhoub e Heloisa Starling conversam sobre os movimentos contrários à vacinação.

Transmissão ao vivo pelo canal do YouTube do IMS e pelo Facebook da revista Serrote.

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