Atrocidades na Guerra da Ucrânia têm raízes profundas nas Forças Armadas da Rússia

Brutalidade assume formas reconhecidas por pessoas que já viram os militares russos em ação em outros lugares

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Anton Troianovski
The New York Times

Uma foto feita em Butcha, na Ucrânia, um subúrbio de Kiev, mostra uma mulher no quintal de sua casa com a mão cobrindo a boca num gesto de horror diante dos corpos de três civis espalhados à sua frente. Quando Aset Chad viu aquela foto, começou a tremer e voltou 22 anos atrás no tempo.

Em fevereiro de 2000, Chad entrou no quintal de sua vizinha na Tchetchênia e viu os cadáveres de três homens e uma mulher baleados diversas vezes diante de sua filha de oito anos de idade. Soldados russos haviam invadido seu vilarejo e assassinado ao menos 60 pessoas, estuprado pelo menos seis mulheres e arrancado os dentes de ouro de suas vítimas, como descobriram observadores de direitos humanos.

Entrevistada por telefone em Nova York, onde hoje reside, Chad contou: "Ando tendo flashbacks pavorosos. Vejo exatamente o que está acontecendo. Vejo os mesmos militares, as mesmas táticas russas que eles utilizam, desumanizando as pessoas."

Tetiana Petrovna em jardim onde Roman Havriliuk, o irmão dele, Serhi Dukhli, e uma vítima não identificada foram encontrados em Butcha, na Ucrânia
Tetiana Petrovna em jardim onde Roman Havriliuk, o irmão dele, Serhi Dukhli, e uma vítima não identificada foram encontrados em Butcha, na Ucrânia - Daniel Berehulak/The New York Times

A brutalidade da guerra de Moscou na Ucrânia assume duas formas distintas que são reconhecidas por pessoas que já viram os militares russos em ação em outros lugares.

Há a violência programática infligida por bombas e mísseis russos contra alvos civis além de militares, cuja finalidade é tanto derrotar quanto desmoralizar. Esses ataques lembram a destruição aérea da capital tchetchena, Grozni, em 1999 e 2000, e então, em 2016, do reduto rebelde sírio de Aleppo.

Mas há também a crueldade de soldados e unidades individuais. Os horrores de Butcha parecem descendidos diretamente da chacina do vilarejo onde Chad vivia, Novie Aldi, uma geração atrás.

As mortes e os crimes cometidos por soldados são um dos elementos presentes em todas as guerras, incluindo as que foram travadas pelos EUA nas últimas décadas no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque.

Sempre foi difícil explicar por que soldados cometem atrocidades ou descrever como as ordens de comandantes, a cultura militar, a propaganda nacional, a frustração do campo de batalha e a perversidade individual podem se somar para produzir tais horrores.

Na Rússia, porém, atos como esses raramente são investigados ou mesmo reconhecidos, o que dirá punidos. Diante disso, não fica claro até que ponto a brutalidade de soldados deriva da intenção dos comandantes ou se os comandantes não controlam suas tropas adequadamente.

Quando isso é somado à aparente estratégia de bombardear alvos civis, muitos observadores concluem que o governo russo –e, possivelmente, partes da sociedade russa também— na realidade tolera ou até aprova a violência contra civis.

Alguns analistas enxergam o problema como sendo estrutural e político, com a falta de responsabilização das Forças Armadas russas amplificada pela ausência de instituições independentes no sistema autoritário de Vladimir Putin ou na União Soviética que o antecedeu. Em comparação com o Ocidente, menos pessoas nutrem qualquer ilusão de que direitos individuais devam valer mais que o poder bruto.

"Acho que existe uma espécie de cultura da violência", afirmou o filósofo ucraniano Volodimir Iermolenko. "Ou você domina ou é dominado." Na Ucrânia, ao que tudo indica, os soldados russos podem continuar a matar civis com impunidade. Essa visão é reforçada pelo fato de que virtualmente nenhum dos perpetradores de crimes de guerra na Tchetchênia, onde o Kremlin esmagou um movimento independentista ao custo de dezenas de milhares de vidas civis, foi levado à Justiça na Rússia.

Naquela época, investigadores russos disseram a Chad que os assassinatos em Novie Aldi podiam ter sido cometidos por tchetchenos vestidos de soldados russos, recorda ela. Hoje o Kremlin alega que quaisquer atrocidades cometidas na Ucrânia ou são encenadas ou foram perpetradas por ucranianos e seus "patronos" ocidentais. Ao mesmo tempo, denuncia como "nazista" quem resiste ao avanço russo.

Muitos russos acreditam nessas mentiras, e os que não acreditam tentam em vão entender como esses crimes podem estar sendo cometidos em seu nome. A violência ainda é algo comum nas Forças Armadas russas, nas quais mais soldados de escalão mais alto rotineiramente maltratam os mais juniores.

Não obstante duas décadas de esforços para converter o Exército numa força mais profissional, ele nunca desenvolveu um nível intermediário forte comparável aos suboficiais que nas Forças Armadas americanas atuam como ponte entre os comandantes e os soldados de nível inferior. Em 2019, na Sibéria, um soldado raso abriu fogo em sua base militar e matou oito colegas. Declarou mais tarde que cometeu a chacina porque outros soldados haviam transformado sua vida num inferno.

Especialistas dizem que o trote nas Forças Armadas russas é mais leve hoje do que no início dos anos 2000, quando matava dezenas de recrutas todos os anos. Mas dizem também que em muitas unidades a ordem ainda é mantida com sistemas informais semelhantes às hierarquias abusivas de prisões russas.

Para Serguei Krivenko, que dirige uma organização de direitos humanos que presta assistência jurídica a soldados russos, essa violência, aliada a uma ausência de monitoramento independente, aumenta a possibilidade de crimes de guerra serem cometidos. Para ele, os soldados russos são tão capazes de cometer crueldade contra outros russos quanto contra ucranianos.

"É o estado do Exército russo, essa impunidade, agressão e violência interna, que é expresso nessas condições", disse Krivenko. "Se houvesse uma insurreição em Voronezh" –cidade no oeste da Rússia— "e o Exército fosse chamado para intervir, os soldados se comportariam da mesma maneira exatamente."

Mas é possível também que os crimes na Ucrânia decorram dos anos de propaganda desumanizadora feita pelo Kremlin contra ucranianos, que os soldados assistem em sessões obrigatórias. Como revela uma amostra de programação disponível no site do Ministério da Defesa russo, os recrutas precisam assistir a "programas de TV informativos" das 21h às 21h40, todos os dias, menos aos domingos.

Reportagens russas revelam que a mensagem de que os russos agora estão combatendo "nazistas" –como fizeram seus antepassados na Segunda Guerra— está sendo difundida entre as Forças Armadas.

Em vídeo distribuído pelo Ministério da Defesa, o major Aleksei Shabulin afirma que seu avô "perseguiu a escória fascista nas florestas" durante e após a Segunda Guerra, fazendo referência a combatentes independentistas ucranianos que em dado momento colaboraram com a Alemanha nazista. "Estou levando essa tradição gloriosamente adiante", diz Shabulin. "Não envergonharei meu bisavô. Irei até o fim."

Essa propaganda também preparou os soldados russos para não preverem muita resistência à invasão –afinal, conforme a narrativa do Kremlin, os ucranianos tinham sido subjugados pelo Ocidente e aguardavam a hora de serem libertados por seus irmãos russos. Krivenko, o defensor dos direitos de soldados, disse que conversou diretamente com um soldado russo que ligou para o número de sua organização e relatou que, mesmo quando sua unidade recebeu a ordem de sair de Belarus e invadir a Ucrânia, não foi explicitado que os soldados estavam prestes a ingressar numa zona de guerra.

Segundo Krivenko, os comandantes militares tratam o Exército basicamente como se fosse um rebanho de gado. Putin chegou a dizer que apenas soldados contratados combateriam na Ucrânia, mas seu Ministério da Defesa foi forçado a admitir que também recrutas –que cumprem um ano de serviço militar obrigatório na Rússia para todos os homens de entre 18 e 27 anos— foram enviados ao front.

Os ucranianos resistiram aos russos, apesar de Putin ter dito, em ensaio publicado no ano passado que o Ministério da Defesa tornou leitura obrigatória para os soldados, que ucranianos e russos integram "uma só nação". Segundo Mark Galeotti, estudioso de assuntos de segurança russa, a resistência aguerrida de um povo considerado como parte do próprio povo russo contribuiu para a visão de que os ucranianos são piores que adversários usuais no campo de batalha. "O fato de cidadãos ucranianos comuns estarem empunhando armas contra os russos cria a impressão de que não são apenas inimigos –são traidores."

E a traição, já disse Putin, "é o crime mais grave de todos".

A violência de militares russos contra civis é até certo ponto uma característica dos militares russos, não uma ocorrência excepcional. Na Síria, a Rússia atacou hospitais para sufocar os derradeiros bolsões de resistência ao presidente Bashar al-Assad –uma "abordagem brutalmente pragmática à guerra" que possui "sua lógica própria e hedionda", disse Galeotti. Foi um eco da destruição aérea de Grozni cometida pela Rússia em 1999 e 2000 e um prelúdio ao cerco feroz a Mariupol, na invasão em curso agora.

Os assassinatos à queima-roupa de civis e a violência sexual cometida por soldados individuais são uma questão separada. Em Butcha, civis disseram ao New York Times que o estado de ânimo e os comportamentos dos soldados russos foram ficando mais brutais à medida que a guerra avançava e que os primeiros soldados a chegar foram relativamente pacíficos. "Você tem um bando de rapazes privados de sono e portando armas que pensam que regra nenhuma se aplica a eles", disse Galeotti.

A violência está levando estudiosos a reavaliar sua visão do Exército russo. Numa operação militar que pareceu, pelo menos inicialmente, ter a finalidade de conquistar a lealdade dos ucranianos a Moscou, atrocidades contra civis parecem ser tremendamente contraproducentes. A Rússia já testemunhou isso na Tchetchênia, onde a violência contra civis alimentou a resistência tchetchena.

"Cada civil morto significava uma bala disparada contra um soldado russo", disse Kiril Shamiev, que estuda relações civil-militares russas na Universidade Europeia Central, em Viena.

"Pensei que eles tinham aprendido algumas lições."

Tradução de Clara Allain

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