Eleições em Angola são teatro de governo que não quer democracia, diz ativista

Luaty Beirão, preso político em 2015, afirma que sociedade angolana passou tempo demais em sujeição ao governo

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Guarulhos

Há sete anos, o rapper e ativista Luaty Beirão, 40, foi preso por participar de uma microcélula opositora ao poder em Angola. De lá para cá, o país assistiu a intensos capítulos políticos.

José Eduardo dos Santos, que por 38 anos esteve no poder, deixou o país e morreu, e João Lourenço, seu herdeiro político, elegeu-se presidente com uma extensa lista de promessas.

Mas nem tanta coisa assim mudou, diz Luaty, que falou à Folha em meados de julho, por videochamada, de Portugal. O autor de "Sou Eu Mais Livre, Então" (ed. Tinta da China) falou sobre as eleições, o fortalecimento da sociedade civil, a morte de Dos Santos e os resquícios entranhados do autoritarismo.

Rapper e ativista angolano Luaty Beirão durante visita a Paraty para participar da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty - Bruno Santos - 28.jul.17/Folhapress

O pleito desta quarta (24) vai apontar uma nova Assembleia Nacional, composta por 220 membros; o presidente e o vice serão, respectivamente, o primeiro e o segundo da lista do partido mais votado. Lourenço, do MPLA, pode ser considerado favorito, mas a Unita, principal sigla de oposição, liderada por Adalberto Costa Júnior, espera ameaçar com mais força o governismo.

Qual o cenário das eleições? O governo disponibilizou um número para as pessoas enviarem um SMS e saberem onde vão votar. Todos começaram a encontrar um parente morto. Procurei o nome do meu pai, morto em 2006, e ele tem dados para votar. Isso é sintomático. A dúvida que fica é se a incompetência é propositada ou não.

Houve também a mexida na Constituição [em 2021], mais uma vez com a arrogância da maioria parlamentar, que fez mudanças cosméticas que os interessavam, mas não as de fundo reclamadas pela sociedade, como reintroduzir eleições presidenciais separadas das legislativas e reduzir os poderes do presidente. Temos um sistema hiperpresidencialista no qual não elegemos o presidente.

Depois, mexeram no pacote eleitoral e tiraram elementos que garantiam algum resquício de transparência. É o que regimes autoritários fazem: assim que veem que a sociedade começa a se organizar, rapidamente eles dão uma forma de ilegalizar a ação da sociedade civil, como foi com a lei que proíbe as sondagens.

As eleições estão completamente condenadas. Isso está mais para a teatralização de um ato eleitoral para legitimar um regime que considera a possibilidade de haver alternância de poder.

Está apoiando algum candidato ou partido? Se formos francos, existe um único partido capaz de ser uma alternativa mais ou menos séria para a alternância, necessária para a democracia. É a Unita.

Infelizmente os outros todos não me parecem ter organização interna suficiente. Eu simpatizo com Adalberto Costa Júnior [líder da Unita], mas não acho que ele seja a Unita. A Unita já deu provas mais do que evidentes que tem o mesmo problema de mentalidade dos que estão a governar: de que, assim que lá chegarem, vão se embelezar com aquilo.

A nova geração terá peso? Se as eleições fossem a vontade expressa das pessoas, tenho certeza que sim. Mas as eleições em Angola não são isso. Os resultados que vão ser lidos no final eles [o governo] já sabem quais são. Só haverá resultado transparente se as pessoas todas, tendo consciência de que seus votos serão roubados, esforçarem-se para não aceitar isso. Isso significa ir para a rua e contestar.

E a diáspora? Pode ser mais crítica? Não necessariamente. Mas também essa questão foi mais uma palhaçada. Mesmo que todas as pessoas da diáspora mais abertas a nível de consciência democrática não votem no MPLA, isso não terá peso nenhum, porque é apenas uma pequenina fração.

No seu livro [lançado em 2017], o senhor diz que não celebraria a morte de José Eduardo dos Santos, que ocorreu agora. Como recebeu a notícia? Estava em Portugal e fiquei completamente indiferente. Em Angola nem se mencionava o nome ou o estado de saúde dele antes da morte. E também não tenho pena. Ele acabou por ser isolado pelo sistema antropófago que criou. Quis ser lembrado como um patriota, mas saiu do seu país e não foi tratado nos hospitais que ele próprio criou. Acabou a antítese da imagem que projetou. Sozinho, sem apoio, completamente pária.

Como avalia a organização da sociedade civil hoje? Nada muito vistoso. Paulatinamente tenho sentido um bocadinho mais de coesão, mas ainda muito tênue e titubeante. Há muita resistência das organizações em confiarem umas nas outras. Às vezes, por pequenas nuances as pessoas incompatibilizam-se logo.

A que atribui essa dificuldade de fortalecimento da sociedade civil? Foram muitos anos de aceitação de uma posição de sujeição ao governo. E essa relação de dependência não é fácil de desfazer. É preciso que novas organizações sejam menos cuidadosas, mais peito aberto, que não dependam da benevolência do governo.

Qual avaliação faz do governo do João Lourenço? Nos primeiros dois anos, quis acreditar numa intenção de fazer algo diferente. Começamos a sentir uma abertura na imprensa, que até então era uma máquina de propaganda do MPLA. Não sei se ele ficou envolto nos tentáculos fortes criados ao longo dos anos no partido, mas sei que isso se perdeu. Voltou a ser uma máquina de propaganda e lavagem de imagem.

Mas uma coisa positiva que acho que dificilmente voltará a recuar, a não ser que se retomem as práticas de repressão violentas, é a janela aberta para a liberdade de expressão. As pessoas começaram a usar esse espaço, mesmo aquelas que não ousavam nem sequer dar likes no que concordavam no Facebook. Sentimos florescer uma sociedade civil muito mais consciente e ativa. Nisso, ele tem certo mérito.

Acha que na Angola atual uma prisão política como a sua poderia ocorrer? Existem presos políticos nesse momento com acusações ridículas. São os jovens Luther Campos e Tanaice Neutro, presos por associação forçada a eventos de ataque a um comitê do MPLA. Não acho que haja automaticamente a possibilidade de nos livrarmos desse espectro de regime autoritário que põe pessoas na prisão só porque estão a ser inconvenientes.


Raio-X | Luaty Beirão, 40

Nascido em Luanda, formou-se em engenharia no Reino Unido e em economia na França. Na cena do rap, é conhecido por nomes artísticos como Ikonoklasta. Compôs o chamado "movimento revú", de oposição ao governo do MPLA. Foi preso ao lado de outros 16 ativistas em 2015 quando discutia um livro sobre democracia. Na prisão, fez greve de fome por 36 dias. É autor de "Sou Eu Mais Livre, Então: Diário de um Preso Político Angolano" (ed. Tinta da China, 2017).

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