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Eleição em Angola 20 anos após fim da guerra tenta tirar democracia da geladeira

Oposição busca alternância de poder em país africano governado pelo mesmo partido desde 1975

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São Paulo

Angola vai às urnas na quarta (24) em um cenário cheio de simbolismos: a quinta eleição multipartidária da história do país ocorre 20 anos após o fim de uma guerra civil de quase três décadas e pouco mais de um mês depois da morte de José Eduardo dos Santos, controverso líder que ficou 38 anos no poder.

Em um país onde o Estado muitas vezes se confunde com o partido governista —o MPLA domina a política local desde a independência, em 1975—, a surpresa para acadêmicos e para a sociedade civil é a articulação inédita da oposição angolana.

João Lourenço, presidente de Angola, durante entrevista coletiva na sede da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em Lisboa - Carlos Costa - 29.jun.22/AFP

O movimento cria uma janela de oportunidade para Angola tirar a democracia da geladeira, ainda que movimentos sociais aleguem não confiar na lisura do processo eleitoral, durante o qual pesquisas de intenção de voto, por exemplo, foram proibidas —sondagens extraoficiais têm baixíssima credibilidade.

"Angola é uma transição democrática que ficou parada no tempo", diz Jonuel Gonçalves, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Instituto Universitário de Lisboa. "Não se trata de um regime totalitário, mas o partido tem o mesmo poder que o Estado, de modo que o país não anda nem para frente nem para trás."

Cerca de 14,4 milhões de pessoas —metade do país— estão aptas a votar. Nas urnas, elas vão eleger uma nova Assembleia Nacional, composta por 220 membros. O presidente e o vice, como determina uma contestada alteração na Constituição, feita em 2010, serão, respectivamente, o primeiro e o segundo da lista do partido mais votado.

Em ato raro, a Unita, maior sigla da oposição, viu sua lista de candidatos virar guarda-chuva para nomes que não integram as fileiras partidárias, mas compõem a Frente Patriótica Unida, um movimento maior que pleiteia enfim retirar o MPLA do governo do país africano.

Gonçalves avalia que o grande desafio da legenda liderada por Adalberto Costa Júnior será conquistar votos novos em vez de aglutinar o apoio antes destinado a partidos menores de oposição, que poderiam "pagar a fatura da subida da Unita". Pesa o fato de que estas serão as primeiras eleições nas quais a geração que nasceu no pós-guerra irá às urnas —apenas maiores de 18 anos podem votar.

Para essa fatia, o principal capital simbólico do MPLA, o de ter construído Angola após o conflito —José Eduardo dos Santos chegou a ser apelidado de "o arquiteto da paz"—, tem menos peso. "Para a maioria, a guerra é uma imagem muito longínqua, mesmo porque, na fase final, o conflito estava longe das grandes cidades."

Também está em jogo, claro, a avaliação do governo de João Lourenço (ou JLo), herdeiro político de Dos Santos alçado à Presidência em 2017. Resumida, sua agenda de promessas priorizava o combate à corrupção entranhada nas elites e a diversificação na economia, desafios que caminharam juntos após o boom do petróleo nos anos 2000.

No primeiro quesito, JLo avançou, "mas com uma abordagem inconsistente, mantendo próximas a ele figuras com reputações nada exemplares", diz Marisa Lourenço, analista da consultoria Control Risks para a África Austral. Como exemplo exitoso, menciona as reformas por mais transparência no setor de extração de diamantes.

O índice da Transparência Internacional que mede a percepção da corrupção na administração pública mostrava Angola com 19 pontos quando JLo assumiu o governo. A cifra subiu para 29 no último ano —quanto mais perto de zero, pior. Angola está na 136ª posição em um ranking com 180 nações; o Brasil é o 96º.

Na economia, o avanço foi comedido. Mais de 85% das exportações ainda giram em torno do petróleo. O agravante, diz a analista, está no fato de que o governo nunca investiu na capacidade de refino.

"Isso aumenta o custo de vida, porque Angola está ainda mais exposta aos preços dos combustíveis à medida que não consegue cuidar de sua própria demanda doméstica pelo produto."

A pandemia de coronavírus agravou o cenário, e o futuro presidente herdará um país com índices elevados de insegurança alimentar e um PIB (US$ 72,5 bilhões) que representa metade do de 2014.

"Há uma nova ética no país, mas a situação da população, que já vinha se degradando com a recessão, não melhorou", resume Gonçalves.

Em campanhas descentralizadas, grupos da sociedade civil, como o Movimento Cívico Mudei, que congrega várias organizações, alertam para a possibilidade de que haja fraude na contagem dos votos.

Criticam, por exemplo, a revisão da lei eleitoral, capitaneada pelo MPLA, que retirou a apuração dos municípios, centralizando-a em nível nacional. Eles temem que, assim, haja menos transparência.

O professor Jonuel Gonçalves diz ver baixa possibilidade de fraude após a votação. O problema, para ele, está na etapa anterior. "O governo claramente utiliza a máquina administrativa, de modo que a mensagem da oposição não chega tão longe quanto a do governo."

Lourenço, da Control Risks, faz análise semelhante. "A polícia, os tribunais e a mídia são parciais com o MPLA, que consistentemente enfraquece instituições democráticas para se manter no poder."

A alternância de poder bate à porta de Angola, país africano que divide com o Brasil idioma, capítulos da história e considerável fluxo migratório. Mas ainda não sabe se terá chances de ingressar.

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