Não há evidências de que presidente do Chile tenha projeto nacional inspirado em Lula, como afirma post

País dispõe de programa similar ao Bolsa Família desde 1981

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São Paulo

É falsa a publicação que afirma que o governo chileno adotará a política petista e que fará homenagem ao ex-presidente brasileiro Lula (PT). Como verificado pelo Projeto Comprova, ao contrário do que diz o post, Gabriel Boric, presidente do Chile, não ligou para Lula e não há indícios de que ambos discutiram projetos políticos envolvendo a criação de programas semelhantes ao SUS (Sistema Único de Sáude) e ao Bolsa Família no Chile. Lula e Boric apenas manifestaram apoio mútuo no período de eleições de seus países.

A partir do momento em que a publicação diz que o programa chileno dará créditos a Lula, pode passar a falsa impressão de que tanto o SUS quanto o Bolsa Família foram implementados na gestão petista. No Brasil, o SUS foi previsto na Constituição Federal de 1988 e implementado em 1990 —13 anos antes da gestão petista. Já o Bolsa Família foi implementado em 2003, no comando de Lula, a partir da reorganização de programas sociais que foram criados no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), como Bolsa Escola e Cadastro Único, por exemplo.

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

Fotografia colorida mostra presidente do Chile, com a mão direita ao peito e usando uma faixa nas cores branco, vermelho e azul. Ao fundo, estão soldados.
O presidente chileno, Gabriel Boric; é falsa afirmação segundo a qual ele se inspirou em Lula para organizar projeto nacional - Jorge Villegas - 12.mar.2022/Xinhua

Alcance da publicação

O tuíte afirmando que Gabriel Boric teria ligado para Lula antes do anúncio de novos auxílios teve 17,2 mil curtidas, 1.865 compartilhamentos e 220 tweets com comentários, até o dia 19 de agosto.

O que diz o autor

A reportagem não conseguiu contato com o autor da publicação, pois, em seu perfil no Twitter, o envio de mensagens diretas não é permitido. O perfil também não respondeu o comentário deixado na publicação e não foi encontrado em outras redes sociais.

Como verificamos

Para fazer a verificação, pesquisamos no Google sobre um possível encontro entre Lula e Boric. Para isso, usamos palavras-chave como "Lula", "Boric" e "encontro". Também fizemos buscas pelos termos "bolsa família" e "SUS" em relação ao nome de Boric. Na consulta ainda foi usada a ferramenta de Busca Avançada do Google para encontrar resultados de sites do Chile e em espanhol.

Em seguida, usamos as ferramentas de busca do TweetDeck para ver se havia alguma publicação recente nos perfis do Twitter de Lula, Boric e do governo chileno que indicasse um encontro entre os dois políticos.

Para saber de quando era a foto usada no post, que mostra Lula usando um boné com o nome de Boric, utilizamos a busca reversa TinEye.

Também visitamos o portal estatal do Chile para verificar programas sociais em andamento. No Chile Atiende foi possível conhecer mais sobre o Subsídio Família, equivalente ao Bolsa Família brasileiro. No site da Biblioteca del Congreso Nacional de Chile, localizamos a lei de 1981, que instituiu o programa nacional de subsídio pago a famílias sem renda.

Por fim, tentamos contato com a assessoria do PT, que nos encaminhou para a assessoria de Lula, e com o governo do Chile, pelas redes sociais, já que não encontramos contato de imprensa nos sites oficiais. Porém, não tivemos resposta do governo do Chile.

Também procuramos o autor da postagem, porém o perfil não permite o envio de mensagens.

Relação entre Boric e Lula

Gabriel Boric foi eleito presidente do Chile em dezembro de 2021 e empossado em março de 2022. O político de esquerda tem 35 anos e substitui Sebastian Piñera, líder da direita que comandou o país nos últimos quatro anos, período de polarização marcado por manifestações que resultaram em uma nova Constituição. Boric foi líder estudantil e, durante a campanha para o cargo, levantou bandeiras como o direito ao aborto e casamento igualitário.

Em entrevista à BBC Mundo em janeiro deste ano, Boric disse esperar trabalhar com o ex-presidente caso ele seja eleito. "Espero trabalhar ao lado de Luis Arce, na Bolívia, de Lula se ele ganhar as eleições no Brasil, de Gustavo Petro, cuja experiência se consolida na Colômbia. Acho que pode ser um eixo interessante", disse. Em outro trecho da entrevista, ele diz que, apesar de valorizar Lula, busca também outras referências. "Valorizo muito a experiência de Lula, mas também procuro conhecer a de (Fernando Henrique) Cardoso. Não se pode ter referências estáticas."

Lula e também a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) celebraram a vitória de Boric. Pelas redes sociais, o candidato à presidência pelo PT parabenizou o chileno. "Fico feliz por mais uma vitória de um candidato democrata e progressista na nossa América Latina, para a construção de um futuro melhor para todos", escreveu. Já Dilma disse que a vitória de Boric é "um alento aos povos da América Latina que lutam contra o autoritarismo".

Boric, por sua vez, também declarou apoio ao ex-presidente na corrida pelo Planalto. "Desejamos muito sucesso a Lula. Para que vamos esconder? Tomara que tenha um ótimo resultado nas próximas eleições", afirmou a jornalistas.

Lula chegou a ser convidado para a posse de Boric, mas enviou uma carta ao presidente informando que não poderia comparecer e agradecendo ao convite. De acordo com Boric, Lula não quis ir para não causar constrangimentos diplomáticos. "Ele foi meu convidado para a posse, mas decidiu não vir justamente por diferenças diplomáticas, para não gerar um incidente diplomático. Uma atitude que depõe a seu favor", disse a jornalistas. Para representar o PT e o ex-presidente, a ex-presidente Dilma Rousseff foi escolhida para estar presente na cerimônia.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) também foi convidado, mas também não compareceu. "Não vou entrar em detalhes, porque eu não sou de criar problemas nas relações internacionais. O Brasil vai muito bem com o mundo todo. Você vê quem vai à posse do novo presidente do Chile [Boric]. Eu não irei, vê quem vai", disse Bolsonaro, durante entrevista ao site Gazeta Brasil, repercutida pela imprensa. Com a ausência de Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) foi escalado para representar o governo brasileiro.

Sem evidências

Apesar de os dois políticos terem demonstrado apoio um ao outro, não há indícios de que ambos tiveram alguma conversa para discutir projetos para o Chile. A reportagem questionou se eles tiveram algum diálogo sobre essas questões e a assessoria de Lula disse "desconhecer" essa conversa.

Também não há nenhuma menção a essa suposta conversa em sites de notícias brasileiros e chilenos nem nas redes sociais de Boric e Lula. O governo do Chile também foi acionado, mas até o momento não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Chile já tem "Bolsa Família"

O Chile possui programa social equivalente ao Bolsa Família desde 1981. Conhecido como SUF (Subsídio Unifamiliar), o benefício é destinado às pessoas de baixa renda segundo o Cadastro Social de Domicílios (CSR). O valor do subsídio é de 16.418 pesos chilenos por dependente, equivalente a R$ 92. Já para as pessoas com algum tipo de deficiência, o valor muda para 32.836 pesos chilenos, o equivalente a R$ 188,29.

Em maio, o governo de Boric entrou em acordo com a CUT (Central Única de Trabalhadores) do país para reajustar o benefício em 6 mil pesos. Já em julho, o presidente anunciou um novo subsídio de cestas básicas como medida para enfrentar o aumento dos preços de produtos essenciais. Pelo benefício, cada dependente familiar poderá receber quantia em dinheiro que varia em relação ao salário de quem recebe o subsídio. O pacote tem um custo de 1,2 milhões de dólares ao governo.

No caso do Brasil, o Bolsa Família foi criado durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula, em 2003. O programa foi feito através da Medida Provisória n°132, e transformado posteriormente na Lei n° 10.386/2004. O objetivo era unificar os programas de auxílio de renda existentes até então no país (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio-gás e o Programa Nacional de Acesso à Alimentação).

O alvo do programa eram famílias com uma renda mensal por pessoa de R$77 a R$154, famílias com situação financeira extremamente vulnerável, que possuíam uma renda mensal por pessoa inferior a R$ 77, e famílias consideradas pobres que contavam com alguma gestante em seu seio familiar. Assim como crianças ou adolescentes com até 17 anos.

O valor do benefício variava de R$ 77 a mais de um salário mínimo, dependendo da renda e da quantidade de crianças na família.

Em 2022, o Bolsa Família foi substituído pelo Auxílio Brasil. Criado em novembro de 2021, o novo auxílio paga por mês R$400 às famílias cadastradas no programa. Neste ano, de agosto a dezembro, será feita uma parcela extra de R$200 que elevará o valor para R$600 de forma temporária.

O Auxílio Brasil foi criado pela Lei nº 14.284, de 2021. A norma é resultado da medida provisória MP 1.061/2021, aprovada pelos parlamentares em dezembro do ano passado. A matéria foi votada pelo Senado no dia 7 de julho. O relator, senador Davi Alcolumbre (União-AP), defendeu a aprovação.

Sistema público de saúde no Chile

O país passará a ter um sistema universal público de saúde a partir de setembro. A medida foi anunciada por Boric em julho e é uma promessa feita durante a campanha. O sistema público de saúde também está previsto na nova Constituição do país, que passará por referendo em setembro.

O novo sistema foi elogiado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) . "Parabenizamos a decisão do Governo do Chile de cobrir todos os gastos de saúde a 6 milhões de chilenos. É um grande passo em direção ao seu compromisso com o #SaúdeParaTodos", tuitou o diretor-geral da instituição, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Atualmente, o Chile conta com o Fundo Nacional de Saúde, em que a população paga para ser atendida. Apenas pessoas com mais de 60 anos ou com renda inferior a US$ 420 mensais estão isentas de cobrança. Com a mudança, o atendimento público será direito de todos, como é o caso do Brasil.

Outros países também têm sistemas públicos de saúde, como Reino Unido, Canadá, Austrália, França e Suécia. O Brasil, no entanto, é o único com população acima de 100 milhões de habitantes com um sistema público gratuito de saúde.

No Brasil, o SUS foi previsto na Constituição Federal de 1988 e criado por meio da lei n° 8080, de 1990, ou seja, antes da gestão petista. A legislação define que o SUS deve ser gerido entre a União, os estados e os municípios. O modelo brasileiro foi inspirado no sistema público de saúde do Reino Unido, o NHS, criado em 1948.

Antes da Lei, de acordo com o Ministério da Saúde, o atendimento dos hospitais públicos estava restrito a 30 milhões de brasileiros. Hoje, o atendimento público é direito de todos. De acordo com dados de 2020 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 71,1% dos brasileiros dependem do sistema público de saúde.

Por que investigamos?

O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais sobre a pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições presidenciais. Conteúdos falsos ou enganosos que envolvem candidatos, como é o caso de Lula, podem influenciar na compreensão da realidade e na imagem construída pelos eleitores sobre o político. A escolha sobre o candidato deve ser tomada com base em informações verdadeiras e confiáveis.

A investigação desse conteúdo foi feita por Folha, Norte de Notícias, NSC Comunicação, Correio Braziliense e Correio do Estado e publicada em 22 de agosto pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 43 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Plural Curitiba, CBN Cuiabá, Nexo, piauí, A Gazeta e O Povo.

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