Gabriel Boric recebeu nesta segunda (4) a versão final daquela que pode ser a nova Constituição do Chile.
Agora, o governo do esquerdista, prestes a completar quatro meses, passará por uma prova de fogo. Até o dia 4 de setembro, quando a população decidirá se acata ou não a nova Carta, ele terá a missão de ampliar os índices de aprovação, tanto do novo código quanto de sua própria gestão.
Fosse hoje a votação, as chances de o texto ser rejeitado e de o país seguir com a Constituição herdada da ditadura de Augusto Pinochet seriam grandes. Pesquisa do instituto Cadem divulgada no domingo (3) mostra que 51% recusariam a nova Carta. Outros 34% a aprovariam, e 15% não souberam responder.
O cenário difere do de fevereiro, quando os números quase se invertiam: 56% diziam sim à nova Constituição, e 33%, não. Dois fatores pesam na mudança: a desinformação em torno do conteúdo da Carta e o alargamento das propostas contempladas, o que dificulta o diálogo com setores conservadores.
A redação de um novo documento para o país foi aprovada há dois anos em um plebiscito histórico, após uma onda de protestos, em grande parte assentada em insatisfações socioeconômicas, eclodir e pressionar o antecessor de Boric, o direitista Sebastián Piñera. Depois, uma Assembleia Constituinte foi eleita, alçando uma maioria de figuras de centro-esquerda para elaborar a nova Constituição.
"A Constituinte acabou colocando numa caldeira as diversas manifestações locais e levando o país para um caminho que estava além do que uma parte dos manifestantes queria", afirma Thiago Vidal, gerente de análise política para a América Latina da consultoria Prospectiva.
O documento estabelece, por exemplo, o direito constitucional ao aborto por decisão voluntária. Hoje, o procedimento só é legal no país em três casos: se há perigo para a vida da mulher, se a gravidez foi decorrente de estupro ou se o desenvolvimento do feto é inviável —cenário semelhante ao do Brasil.
Também dispõe sobre a criação de um sistema público de previdência financiado por trabalhadores e empregadores —o Chile tem hoje um modelo por capitalização, privatizado— e sobre a instituição de um estado plurinacional, reconhecendo assim os povos indígenas, como ocorreu na Bolívia e no Equador.
Outro ponto sensível é a descentralização da administração: o Chile deixaria de ser um Estado unitário e passaria a ser um Estado regional, com maior autonomia a regiões e comunas. "A proposta tem virtudes, como permitir que as regiões adequem políticas públicas nacionais para a sua própria realidade, além de aproximar o governo local da população", diz Esteban Szmulewicz, da Universidade Católica do Norte.
O Senado também daria lugar a uma Câmara das Regiões, compondo o Legislativo ao lado da Câmara. Na prática, explica o pesquisador, a expectativa é que a Casa tenha um perfil menos elitizado.
Para se candidatar à Câmara seria preciso ter no mínimo 18 anos —hoje, para o Senado, a idade mínima é 35. Os assentos também seriam distribuídos levando em conta paridade de gênero e uma reserva para representantes indígenas, e o mandato cairia de 8 para 4 anos, mantendo a possibilidade de reeleição.
Ainda que o último rascunho antes da versão final da Constituição tenha sido tornado público, especialistas alertam para a ampla difusão de notícias falsas sobre o conteúdo do documento, e Boric e seus ministros atribuem ao ambiente de desinformação a rejeição ao texto.
Em março, pesquisa capitaneada pela ONG Derechos Digitales com 1.400 chilenos mostrou que, dos que diziam buscar informações sobre a Constituição com frequência, 66% o faziam por meio das redes sociais. Ao menos 58% disseram ter se deparado com afirmações que depois descobriram serem falsas.
O mais recente levantamento do Cadem mostrou que a aprovação é maior entre os que leram o rascunho da proposta —nesta fatia, 37% dizem que votarão pelo sim, enquanto entre os que não leram são 25%.
A aprovação também é maior entre os que têm de 18 a 24 anos (43%) e entre os que se dizem de esquerda (73%). Dos que se identificam com a direita, somente 12% dizem que vão apoiar; entre os de centro, 28%.
O escritório da ONG Anistia Internacional no Chile se posicionou a favor da aprovação da nova Carta. O diretor-executivo Rodrigo Bustos Bottai diz que a proliferação de boatos "absolutamente deslocados da realidade" preocupa a organização.
Ele elogia o processo de participação social na formulação do texto e afirma que, se aprovada, a Carta representaria um avanço significativo em matéria de direitos humanos. Mas também destaca que "a Constituição seria um ponto de partida, não de chegada".
Para que o texto seja aprovado, será necessário que mais de 50% dos chilenos votem a favor —o voto será obrigatório. No cenário em que o conteúdo é aprovado, porém, ainda será preciso legislar e estruturar vários dos pontos ali descritos. Aqui entra a dificuldade que o governo tem para avançar sua agenda.
Com o segundo Congresso mais fragmentado da América Latina, atrás apenas do Brasil, de acordo com a consultoria Prospectiva, e somente metade de congressistas ao lado de Boric, as chances de a oposição travar as pautas são grandes. O presidente goza de apenas 33% de aprovação, segundo dados do Cadem.
Quando assumiu, em março, esse índice era de 50%. "Isso tem relação com a alta expectativa em torno do próprio governo", diz Vidal. "À medida que ele se elege na esteira dos protestos, com rejeição à situação socioeconômica, e não consegue entregar resultados na velocidade que prometeu, a legitimidade cai."
Já na outra possibilidade —a de o "não" vencer—, a divergência política, parte do jogo democrático, relegaria ao país a continuidade do modelo adotado a portas fechadas na ditadura militar.
Ao receber a proposta da nova Constituição, Boric afirmou que, "mais uma vez, o povo terá a última palavra sobre o seu destino" e pediu "um intenso debate sobre o texto, mas não sobre distorções alheias à realidade". "Temos que nos sentir orgulhosos de que, no momento da crise mais profunda [...] que nosso país viveu em décadas, nós chilenos e chilenas, optamos por mais democracia, não menos."
Entenda a Constituinte chilena
1) Quando e por que foi convocada? Como forma de encerrar uma onda de protestos, o governo Piñera convocou um plebiscito que, com 78,27% dos votos, decidiu pela elaboração de uma nova Constituição
2) Qual a composição? A Assembleia Constituinte conta com 155 membros eleitos por voto popular. Há paridade de gênero: 78 são homens, e 77, mulheres. O membro mais novo tem 20 anos, e a média de idade é de 45 anos. Foram reservadas 17 cadeiras para representantes indígenas. A líder mapuche Elisa Loncón preside o colegiado. Independentes e esquerdistas ocupam a maioria dos assentos.
3) Quando será votada? Boric deve convocar um plebiscito para 4 de setembro. Caso o novo texto seja aprovado, o presidente convocará o Congresso para que a nova Constituição seja promulgada e, assim, substitua a antiga, da era Pinochet. Caso seja rejeitado, o antigo texto segue valendo, e ainda está pouco claro se —e como— governo e legisladores poderiam tentar aprová-la numa outra votação
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