Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Sob pressão, Rússia acelera anexações na Ucrânia e ameaça Ocidente

Medvedev balança a carta da guerra nuclear ao dizer que, uma vez russas, regiões serão defendidas

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São Paulo

À espera de condenações na tribuna da Assembleia-Geral da ONU e com relatos de perdas de mais territórios ocupados na sua invasão da Ucrânia, a Rússia de Vladimir Putin resolveu acelerar o processo de anexação de quatro áreas do país vizinho.

Coube ao ex-presidente e hoje adjunto de Putin no Conselho de Segurança Dmitri Medvedev desenhar: "Invasão de território russo é um crime que nos permite usar todas as formas de autodefesa", disse, ao comentar os pedidos de três administradores pró-Rússia de áreas ocupadas para a realização de referendos sobre a anexação.

Funcionário do governo de Kadiivka, sob ocupação russa, em prédio destruído por bombardeio ucraniano
Funcionário do governo de Kadiivka, sob ocupação russa, em prédio destruído por bombardeio ucraniano - Alexander Ermotchenko - 19.set.2022/Reuters

"Os referendos vão mudar completamente o vetor de desenvolvimento da Rússia por décadas. E não só para nosso país. A transformação geopolítica do mundo será irreversível assim que os novos territórios estiverem incorporados à Rússia", escreveu em uma postagem no Telegram.

Por autodefesa, Medvedev pode estar pavimentando para o chefe a mudança na política atual, de não fazer mobilização geral, que levou à perda de áreas em Kharkiv (nordeste) e parece colocar em risco as franjas de Lugansk, um das duas províncias do Donbass (leste) que os russos conquistaram em julho.

No extremo da ameaça, a aplicação da doutrina nuclear russa, de emprego de bombas atômicas em caso de riscos existenciais. Terceira Guerra Mundial, em outras palavras. Só os EUA já se comprometeram a enviar mais de US$ 15 bilhões (R$ 77,3 bilhões) em armas para Kiev, e elas têm feito a diferença na atual ofensiva.

Recebendo credenciais de embaixadores, Putin adiantou o discurso que seu chanceler, Serguei Lavrov, deverá fazer na ONU. Atacou o que considera projeto hegemônico dos EUA, que "controla tudo, a América Latina, Europa, Ásia e África".

"A hegemonia funcionou em fazê-lo já por muito tempo, mas não pode seguir para sempre, a despeito dos desenvolvimentos na Ucrânia", afirmou, de forma algo cifrada e menos bombástica do que o usual sobre o rumo da sua guerra, levando a especulações: estaria Putin preparando o fim das operações, talvez temendo novas perdas, ou dobrando a aposta de vez?

A aprovação relâmpago pelo Parlamento, nesta terça, de uma lei criminalizando violações a ordem de combate e mobilização acendeu os alertas rumo à segunda hipótese. Assim como um discurso ante executivos de indústrias militares, no qual pediu um aumento na produção de armas "assim que possível". Além disso, Putin segue pressionando o apoio europeu a Kiev usando a carta do asfixiamento energético.

O discurso antiamericano é idêntico ao de seu maior parceiro e principal rival estratégico dos EUA, a China de Xi Jinping, com quem Putin encontrou-se na semana passada, ouvindo "preocupações" acerca da guerra, mas depois aumentando a cooperação militar entre os países. Há a expectativa de que o russo faça algum anúncio na TV nesta madrugada (manhã em Moscou).

O conselheiro de Segurança Nacional americano, Jake Sullivan, criticou a iniciativa e disse que os EUA nunca reconhecerão território anexado —até aí, nunca o fizeram na Crimeia, absorvida por Putin em 2014. Kiev foi na mesma linha, assim como União Europeia e Otan (a aliança militar ocidental).

O roteiro para o Kremlin está pronto e não difere do já aplicado à Crimeia, e mesmo do pedido de proteção das duas autoproclamadas repúblicas populares do Donbass, um dos "casus belli" da invasão em fevereiro, quando Putin as reconheceu. Segundo a agência RIA-Novosti, os referendos fadados a serem acusados de farsescos no Ocidente ocorrerão de 23 a 27 de setembro, um prazo bastante exíguo.

Na segunda (19), os Parlamentos locais de Donetsk e Lugansk, as províncias do leste, concordaram em acelerar a organização do referendo, apesar da oposição do FSB (Serviço Federal de Segurança, uma das agências sucessoras da KGB) por motivos de insegurança.

Nesta terça (20), foi a vez do governo de ocupação de Kherson (sul), outra região sob ataque ucraniano, este muito menos bem-sucedido do que o de Kharkiv. Segundo disse no Telegram Vladimir Saldo, o chefe local, "Kherson irá se tornar um ente pleno de um país unido".

Lá, os russos ocupam cerca de 95% do território, algo semelhante à vizinha Zaporíjia, onde o administrador local também aderiu ao referendo. Ao todo, as áreas somam de 15% a 20% da Ucrânia.

Em Lugansk, a ocupação é quase total, salvo algumas vilas perto da fronteira com Kharkiv, mas a situação em solo é fluida. A dúvida maior é sobre a fronteira que os russos deverão reclamar em Donetsk, cuja capital provincial homônima é governada por separatistas desde a guerra civil iniciada em 2014, na esteira da anexação da Crimeia, por sua vez uma resposta de Putin à queda do governo pró-Kremlin em Kiev.

Já em Donetsk, cerca de 60% do território está em mãos rebeldes e russas, e as forças ucranianas têm posições bem defendidas na província. Na noite de segunda, o presidente Volodimir Zelenski afirmou em Kiev que as tropas russas estão "fugindo em pânico" em vários pontos das frentes de batalha.

Segundo Saldo, o referendo ocorrerá o mais rapidamente possível, e seus estimados 20 mil soldados serão incorporados às Forças Armadas russas.

O embaixador de Lugansk em Moscou, Rodion Mirochnik, deu inclusive pistas do verniz legalista do processo: ele seria submetido à Organização de Cooperação de Xangai, a entidade multinacional criada pela China que sediou o encontro Putin-Xi, e aos países do Brics, bloco que une Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

É de se especular qual seria a reação do governo de Jair Bolsonaro (PL) a um pedido desses, dado que ele manteve a boa relação com Putin ao longo da guerra e recebeu agradecimentos russos por isso, ainda que o Brasil condene a invasão em si.

Falando à TV estatal russa, Lavrov afirmou que a posição russa sempre foi de "respeitar o desejo das populações", indicando por onde vai o Kremlin.

O presidente russo está sob pressão. Membros mais linha-dura de sua elite têm se pronunciado em favor de uma guerra mais ampla e destrutiva, o que ele parece querer evitar para não erodir sua popularidade, envolvendo os números de soldados necessários para alguma vitória —o fracasso em tomar Kiev na primeira semana do conflito se deveu, entre outras coisas, à escassez de tropa.

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