Cabo Delgado vive desesperança após 5 anos de conflito em Moçambique

Psicóloga brasileira atende população afetada por ataques brutais e múltiplos deslocamentos

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São Paulo

Decapitações em massa, sequestros de crianças forçadas a se tornar combatentes, mulheres obrigadas a fazer sexo em troca de comida ou transporte, vilas inteiras incendiadas, famílias separadas na fuga. Os relatos terríveis vêm de Moçambique, país africano de língua portuguesa que vive, há cinco anos, um conflito tão brutal quanto ignorado pela maior parte do planeta.

Os ataques, perpetrados por grupos jihadistas ligados ao Estado Islâmico, começaram em 5 de outubro de 2017 na vila de Mocímboa da Praia e se alastraram por vários pontos da região de Cabo Delgado, no nordeste do país, e pelas províncias vizinhas de Niassa e Nampula. Desde então, são ao menos 4.000 mortos e 1,5 milhão de pessoas sob a necessidade urgente de ajuda humanitária.

Pessoas buscam atendimento médico no povoado de Quionga, em Cabo Delgado, Moçambique - Camille Laffont - 30.set.22/AFP

No ano passado, outros países do continente, entre eles Ruanda e África do Sul, enviaram tropas para ajudar Maputo a defender o território, e o governo moçambicano vem afirmando ao longo deste ano que os principais grupos insurgentes foram derrotados.

Mas ataques efetuados por células rebeldes menores ainda aterrorizam a população de Cabo Delgado e seus arredores, e quase 1 milhão de pessoas estão em situação de deslocamento interno forçado —ou seja, fora de casa, vivendo em assentamentos precários. Mais de 80% delas precisaram se mudar ao menos duas vezes nesses cinco anos, encarando jornadas extenuantes e cheias de riscos por centenas de quilômetros a pé.

É nesse contexto difícil que a psicóloga brasileira Tatiane Francisco atua, atendendo sobreviventes dessas experiências traumáticas, que se multiplicam com o prolongamento do conflito. Algumas delas testemunharam assassinatos cruéis, viram suas residências serem queimadas ou perderam o contato com parentes.

Gestora de atividades de saúde mental em Cabo Delgado pela organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), Tatiane contou à Folha o que tem visto e ouvido dos moradores da província moçambicana.

Em contextos de emergência, quando falta tudo, cuidar da saúde mental pode não parecer prioridade. Por que é importante oferecer atendimento psicológico a vítimas de um conflito como o de Cabo Delgado? Estamos falando de pessoas que viveram experiências traumáticas, de um contexto que também afeta a saúde mental. Realmente falta acesso a necessidades básicas, como água potável, abrigo, saneamento e comida. E as necessidades de saúde em geral são muito grandes: são muitos casos de malária, mulheres com dificuldade de acompanhar a gestação, o parto. Mas não dá para pensar em saúde sem levar em conta a saúde mental —seja em um desastre natural, em uma epidemia ou em uma guerra.

De que maneira o conflito impacta a saúde mental da população dessa área de Moçambique? Muitos chegam com problemas de ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático. Alguns presenciaram a morte de familiares, sofreram violências físicas ou sexuais, tiveram suas casas destruídas e precisaram largar tudo em busca de segurança. Nossos beneficiários relatam que estão sempre preocupados. Quando poderão retornar às suas terras? Haverá novos ataques? Eles vão sobreviver?

Esse abandono da vida anterior, os perigos pelo caminho, as incertezas, a falta de recursos, a dificuldade de integração à comunidade aonde chegam, as experiências de luto, de familiares desaparecidos, o medo… Tudo isso deixa as pessoas em estado de alerta constante e é muito prejudicial.

Muitos deles precisam migrar várias vezes. Como isso os afeta? Nós, seres humanos, não construímos um lar instantaneamente. Quando você está o tempo todo se movendo, quando está constantemente em modo de sobrevivência, não está construindo um lar, um sentimento de pertencimento, de estabilidade. Estar em constante movimento prolonga a sensação de insegurança, de insatisfação com a vida, com as voltas que a vida deu.

O conflito está completando cinco anos. Qual o peso disso para a população? O prolongamento do conflito vai drenando as forças das pessoas. Elas ficam sempre preparadas para fugir, prontas para um próximo deslocamento. É um sentimento de desesperança, de quem não tem a expectativa de um futuro estável e seguro.

Embora haja o desejo —a gente percebe no relato das pessoas que ainda está presente a vontade de que isso tudo acabe, de voltar para sua terra, reconstruir sua vida—, é um luto muito prolongado de tudo que se perdeu esse tempo todo, não só bens ou pessoas. É a perda de todo um estilo de vida, da segurança.

Tatiane Francisco, gerente da ONG Médicos sem Fronteiras
A psicóloga Tatiane Francisco, gestora de atividades de saúde mental da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Cabo Delgado, Moçambique - Mariana Abdalla/Divulgação MSF

Que tipo de ajuda é possível oferecer para essa população? Podemos fortalecer suas estratégias de enfrentamento das circunstâncias que a vida lhes traz. Tentamos engajá-los em atividades que lhes dão prazer, fortalecer suas esperanças, as emoções positivas, mostrar como podem produzir um autocuidado em saúde mental. Temos atendimento individual e ele é extremamente necessário, mas pensamos a promoção da saúde mental por várias vias, com atividades coletivas, de caráter recreativo para crianças.

Há muitas crianças desnutridas, então ensinamos às mães a importância da psicoestimulação para seu desenvolvimento. Entre os deslocados, temos dinâmicas para fortalecer o envolvimento social deles com essa nova comunidade.

A população deslocada já está conseguindo retornar para suas casas? Alguns, sim. Em Mocímboa da Praia, por exemplo, um dos primeiros lugares afetados pelo conflito, os moradores já estão voltando. Mas é um retorno para um lugar com muita destruição. Eles voltam, mas encontram um local sem as estruturas básicas que tornam possível a vida em uma cidade: água potável, alimento, comércios, meios de subsistência. Voltam para cidades que precisam ser reconstruídas.


Números do conflito

  • 946.508 pessoas em situação de deslocamento interno forçado foram registradas em junho deste ano, um aumento de 21% desde fevereiro
  • 17% delas se deslocavam pela primeira vez, 53% pela segunda vez e 30% tinham se deslocado ao menos três vezes desde 2017
  • 55% são crianças, 24% são mulheres e 21% são homens
  • 212 localidades abrigam deslocados internos do conflito
  • 13.654 pessoas foram deslocadas pelo conflito em apenas 1 semana (de 10 a 16.ago.22)
  • 62% se deslocaram caminhando, 36% de ônibus e 2% barco
  • 37% deixaram o local onde estavam devido a ataques e 27% por medo de ataques

Fonte: OIM (Organização Internacional para a Migrações)


Cronologia

  • 2017 Primeiros ataques da milícia jihadista Ansar al-Sunna atingem postos policias de Mocímboa da Praia
  • 2018 Ataques como a decapitação de crianças são atribuídos ao Al-Shabab, grupo terrorista fundado em 2015 (sem relação com o grupo somali de mesmo nome)
  • 2019 Estado Islâmico anuncia que também está presente em Cabo Delgado
  • 2020 Mocímboa da Praia é capturada por um ataque por terra e mar. Os rebeldes destroem prédios do governo e deixam a cidade no mesmo dia; insurgentes executam 52 jovens que se recusaram a se unir a eles, em um massacre na vila de Xitaxi
  • 2021 Terroristas atacam a cidade de Palma, e a francesa Total encerra a exploração de campos de gás na região; Exército moçambicano inicia ofensiva para retomar controle sobre a área, e tropas de países como Ruanda e África do Sul formam uma força regional para ajudar o governo de Maputo
  • 2022 Ataques se intensificam no sul, perto de Metuge, e na província vizinha de Nampula; governo diz que os principais grupos terroristas foram contidos, mas ainda há ataques de organizações menores; número de deslocados internos ultrapassa 900 mil
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