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Entrevista expõe corrupção na África do Sul e afasta sonho do país de Mandela

Blecautes contínuos no país e denúncias envolvendo estatais desidratam apoio ao partido governista

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Joseph Cotterill
Financial Times

Sul-africanos sortudos o suficiente para poderem assistir televisão na última semana durante blecautes recorde presenciaram uma acusação brutal do governista Congresso Nacional Africano (CNA) como uma cleptocracia que saqueia o país e o coloca na escuridão.

Depois que André de Ruyter, executivo-chefe cessante da concessionária de eletricidade Eskom, disse ao canal de notícias eNCA que as usinas de carvão no centro da crise energética foram transformadas em um "cocho de alimentação" do CNA, este o acusou de ter "uma agenda política e ideológica retrógrada".

Sparks Ngwenya usa velas para iluminar sua cabana durante as frequentes quedas de energia da concessionária sul-africana Eskom - Siphiwe Sibeko - 20.fev.2023/Reuters

De Ruyter, que também se referiu a um "político de alto escalão" não identificado envolvido na corrupção que estava sendo protegido por um ministro, foi afastado do cargo pelo conselho da Eskom na quarta (22). Nenhum executivo-chefe de empresa estatal jamais criticou o partido que controla esses ativos cruciais em termos tão rígidos –mas isso reflete o crescente descontentamento no país que pode significar que o ataque furioso do CNA a De Ruyter seja um tiro no pé.

A África do Sul tem uma sociedade civil expressiva, jornalistas investigativos curiosos e uma oposição ativa. A oposição oficial, a Aliança Democrática, já exigiu, por meio da lei de liberdade de informação, que "a direção da Eskom divulgue o nome do político sênior do CNA em questão".

Grupos empresariais também exigiram uma investigação urgente, "principalmente por causa de acusações de que ministros e assessores da Presidência sabiam dos altos níveis de corrupção e aparentemente nada fizeram a respeito".

Cyril Ramaphosa assumiu a liderança do CNA em 2017 com a promessa de acabar com a corrupção que havia se espalhado sob seu antecessor, Jacob Zuma. Mas as alegações de De Ruyter, juntamente com o suborno desenfreado em outras estatais expuseram o fracasso da tentativa do presidente e revelaram um partido governante corrompido.

De Ruyter, cujo recrutamento no setor privado há três anos para resgatar a Eskom foi aprovado pelo CNA, anunciou em dezembro que renunciaria após ser acusado de traição pelo ministro da Energia. "Estou sob suspeita de atividade traidora, mas os verdadeiros culpados podem agir impunemente", disse ele.

Suas alegações atingiram o cerne do maior problema enfrentado pela economia da África do Sul: como separar o CNA das empresas estatais que dominam a atividade, mas estão levando o país à beira do colapso. De acordo com o South African Reserve Bank, apagões contínuos estão custando à economia US$ 51 milhões por dia.

Para o CNA, sua chance de ampliar o controle do movimento de libertação sobre a democracia sul-africana para sua quarta década nas eleições do próximo ano estão desaparecendo na escuridão dos cortes de energia que duram até 12 horas por dia.

"A crise energética é um grande risco para suas perspectivas; quando De Ruyter diz que [a Eskom] está sendo esvaziada por dentro pelo CNA no mais alto nível, isso remove sua negação plausível", diz o analista político Khaya Sithole. Pesquisas recentes situam o apoio ao partido em 40%, depois de conquistar mais de 57% em 2019.

Que a Eskom foi destruída pela corrupção, sabotagem e intromissão de políticos está bem documentado. Mas até agora "você não tinha ninguém com conhecimento tão íntimo quanto o executivo-chefe a um passo de citar nomes", acrescentou Sithole.

Como resultado, a defenestração de De Ruyter mostrou "um elemento de pânico" por parte do CNA: "Uma reação muito instintiva para impedi-lo de falar a todo custo".

No dia em que o executivo-chefe foi deposto, nesta semana, o Tesouro Nacional disse que pagaria e assumiria parcialmente cerca de dois terços das dívidas da Eskom, ou US$ 14 bilhões. A operação de três anos destina-se a liberar dinheiro para consertar usinas elétricas e evitar a inadimplência.

"Não é o ideal, mas é a melhor decisão dada a situação fiscal da Eskom", diz o economista Thabi Leoka. Mas o resgate aumentará os empréstimos estatais que deveriam estar caindo como parcela do PIB.

"Isso nos leva três anos para trás", diz Leoka. "Também acontece num momento em que as condições monetárias estão apertadas globalmente, pois as taxas de juros estão altas, e o custo do capital está subindo."

O alívio da dívida também expôs a tensão entre manter o controle estatal da Eskom e esperar por uma dose de eficiência privada. O Tesouro ordenou que, em troca do dinheiro, a Eskom tenha que abrir usinas de baixo desempenho para concessionárias privadas e "permitir ampla participação do setor privado" na transmissão.

O Tesouro estava tentando convencer os mercados e as agências de classificação de que poderia impedir que o alívio desaparecesse em um buraco negro, diz Sithole. Mas não tem influência para impor essas exigências porque não pode arriscar que a Eskom vá à falência. "Todos sabemos que é completamente sem sentido. A Eskom é totalmente livre para ignorar essas condições."

O governo de Ramaphosa há muito hesita em promessas semelhantes, como uma divisão em três partes da Eskom em entidades de geração, transmissão e distribuição. Sob De Ruyter, a Eskom preparou uma empresa de transmissão separada, mas o Estado ainda não a lançou.

Investidores querem projetos privados de energia para ajudar a conter os apagões, mas precisam de certeza sobre o investimento em transmissão para saber que poderão se conectar à rede, diz Leoka. "O que faltou em todo o enigma da crise energética foi urgência. Houve um colapso total da Eskom como resultado dessa falta de urgência."

Sithole acrescenta: "Eles simplesmente não sabem administrar entidades [estatais]. Esse sentimento de frustração não é exclusivo da Eskom. Talvez outras pessoas não tenham sido diretas o suficiente [como De Ruyter] para dizer isso em voz alta".

Antes de sua explosiva entrevista na TV, De Ruyter disse ao Financial Times: "Em nossos compromissos com investidores privados, ainda dependemos demais do excepcionalismo sul-africano, da mágica de Madiba [Nelson Mandela]. Você sabe, isso perdeu o brilho há muito tempo. O mundo não deve nada à África do Sul."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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