Descrição de chapéu
África

Revolta na África do Sul é retrato de um continente exausto

País vive cenário de crise sanitária e explosão social que todos temiam no começo da pandemia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mathias Alencastro

Pesquisador do Cebrap, doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e colunista da Folha

Nenhum outro país africano foi tão afetado pela pandemia de Covid como a África do Sul. Polo financeiro e industrial do continente, Gauteng —a província onde fica Pretória, a capital, e Joanesburgo, a principal cidade— concentrou o maior número de casos nas três ondas que assolaram o continente.

Com 14 mil dos 64 mil mortos no país até agora, é a província com o maior número de vítimas.

Gauteng também cristaliza todas as dinâmicas de desindustrialização, falência dos serviços públicos e distensão do pacto social. Abriga uma economia de serviços altamente dependente do movimento internacional que desmoronou durante a pandemia. A queda de 7% do PIB no ano passado escancarou a desigualdade do país, a maior do mundo, que aumentou consideravelmente nos últimos 30 anos.

Um atestado de fracasso do processo democrático concretizado por Nelson Mandela.

Moradores de Soweto, em Joanesburgo, limpam comércio destruído durante os protestos
Moradores de Soweto, em Joanesburgo, limpam comércio destruído durante os protestos - Emmanuel Croset/AFP

Leituras a quente da explosão de violência dos últimos dias, que levou à morte de mais de cem pessoas e paralisou o país, olham para o recente encarceramento de Jacob Zuma como ponto de partida.

No começo do mês, o ex-presidente, envolvido em escândalos de corrupção, foi condenado a prisão, mas inicialmente afirmou que não iria se entregar à Justiça. O processo, acompanhado de perto pela população, parece ter estado na origem de alguns confrontos entre militantes e policiais na região de KwaZulu-Natal, o bastião político de Zuma e centro da disputa entre o CNA (Congresso Nacional Africano, partido que governa o país desde o fim do apartheid) e os nacionalistas zulus.

Lá Fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

O apoio ao ex-presidente também é uma revolta contra o próprio CNA. O sucessor de Zuma no comando da sigla e do país, Cyril Ramaphosa, iniciou uma gestão competente, porém excessivamente tecnocrática, que o elevou a queridinho dos mercados e, ao mesmo tempo, o distanciou da base da legenda.

As revoltas sociais que marcaram a história recente da África do Sul reúnem toda sorte de elementos materiais e simbólicos, incluindo os estudantes, reunidos em torno do movimento Rhodes Must Fall —que defende a derrubada de estátuas em homenagem a figuras do período colonial—; os ataques xenófobos contra imigrantes, que competem com os sul-africanos no apertado mercado de trabalho local; e o massacre de Marikana, no qual trabalhadores de uma mina foram mortos pela polícia após um protesto.

Mas, desta vez, a velocidade e a violência da devastação não têm precedentes. Os ataques aos centros logísticos estão criando problemas de abastecimento de alimentos e de combustível, em um momento no qual os hospitais de algumas das principais regiões do país encontram-se em ponto de ruptura.

A vacinação, que enfim começava a ganhar alguma velocidade, teve de ser interrompida. Esse método por trás dos protestos indica, segundo analistas locais, o envolvimento de facções do aparelho de segurança ligadas a Zuma, que sempre dominou a arte de usar o Estado para atingir os seus fins clientelistas.

Com a confusão entre CNA e poder público que existe desde o fim do apartheid e o agravamento das constrições sociais, a África do Sul vive o cenário de crise sanitária e explosão social que todos temiam no começo da pandemia. Uma combinação explosiva num dos países mais afetados pelo abandono da comunidade internacional do Sul Global durante a pandemia. A revolta é o retrato de uma África exausta.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.