Conservadorismo do Chile freia políticas públicas para mulheres, diz ministra

Antonia Orellana lista avanços de sua gestão com Boric e atribui lacunas em direitos sociais a governos de direita

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Buenos Aires

A gestão de Gabriel Boric completa um ano no próximo sábado (11) e, embora marcada por uma queda de popularidade, é vista com otimismo em alguns setores, como o de políticas para as mulheres. Parte do mérito é atribuída a Antonia Orellana, 33, ministra da Mulher e Equidade de Gênero.

Em entrevista à Folha, ela lista avanços de sua gestão em questões como combate à violência de gênero e conquista de autonomia feminina e atribui a governos anteriores, de direita, o fato de o Chile não ter ampliado o acesso ao aborto como alguns de seus vizinhos na América Latina.

A ministra da Mulher e da Igualdade de Gênero do Chile, Antonia Orellana, durante entrevista coletiva na sede da chancelaria do país, na capital Santiago
A ministra da Mulher e Equidade de Gênero do Chile, Antonia Orellana, durante entrevista coletiva na sede da chancelaria do país, na capital Santiago - Jorge Villegas - 7.mar.23/Xinhua

Qual o seu balanço deste um ano de governo de Gabriel Boric? Conseguimos algo que considero muito importante que é trazer de volta a normalidade da vida cotidiana no Chile, após os dois anos de pandemia e o período do "estallido" social [manifestações antigoverno que eclodiram em 2019]. Chilenos e chilenas estavam com uma sensação de cansaço muito grande, e creio que devolvemos a eles a serenidade, as ruas se acalmaram, e entramos num debate de ideias, que inclui o processo constitucional, ainda em andamento.

Havia uma expectativa, dentro e fora do Chile, de que teríamos uma catástrofe financeira caso o presidente Boric fosse eleito, mas isso não ocorreu. Ao contrário, o Chile recuperou seu posto como país mais atrativo da região para investimentos. Também diminuímos a curva inflacionária, e abrimos espaço para poder discutir temas que considerávamos pendentes havia muito tempo e que foram parte de nossas propostas na campanha eleitoral.

E com relação ao Ministério da Mulher? Qual sua avaliação? No caso da agenda das mulheres, a primeira coisa que tivemos de fazer foi recompor o ministério. A administração anterior à nossa [do ex-presidente Sebastián Piñera], como todas as que são contrárias aos direitos das mulheres, atacou muito a institucionalidade da igualdade de gênero.

O que encontramos quando assumimos foi um ministério em suspensão, e creio que recuperamos seu ritmo de atuação no que diz respeito à gestão, mas também em nível político. Hoje atendemos mais de 60 mil mulheres em nossos serviços de atenção por conta da violência de gênero.

O Chile tem organizações feministas na sociedade, que não estão relacionadas ao governo, muito fortes. Nós temos diálogos com elas e apoiamos várias de suas iniciativas, mas nosso foco neste primeiro ano foi uma campanha pela autonomia econômica das mulheres.

Sempre acho complicado falar de violência contra a mulher sem falar de economia. Ou seja, não podemos falar de "Nem Uma a Menos" [campanha contra a violência iniciada em vários países da região em 2015] sem falar de emprego digno e de independência financeira da mulher, que são ferramentas para que se protejam da violência de gênero. Este vem sendo nosso foco e a área em que mais avançamos.

Os críticos ao governo dizem que a gestão Boric dá espaço demais para questões consideradas identitárias. O que a senhora pensa disso? É muito comum que se associe a agenda de gênero ao termo "identitário". Mas quando eu converso com mulheres chilenas, o que mais ouço como reivindicação é segurança e da garantia de um emprego digno. O que há de identitário nisso? Eu penso que esse tipo de narrativa vem sendo usado para construir uma crítica ideológica a partir da direita.

Não elaboramos políticas para um nicho da população, mas para a metade dela —não somos uma minoria. Nas reuniões que temos com representantes da população LGBTQIA+, o que mais ouvimos como reivindicação é maior segurança e menos discriminação no acesso ao trabalho. Essas são questões de toda a população, não se referem apenas a um grupo pequeno de pessoas. O que buscamos é que os chamados direitos universais sejam realmente universais.

A vontade da mulher garante acesso ao aborto no Uruguai, na Colômbia, na Argentina, no México e em Cuba. Por que esse tema não avança no Chile? Bom, temos uma trava constitucional, que é a lei que determina o aborto em apenas três casos [estupro, inviabilidade do feto e risco de morte da gestante] . Depois temos hoje uma constituição do Congresso que não nos dá maioria, e essa é a razão pela qual está difícil avançar com uma lei de aborto mais ampla.

Neste contexto, nós, como ministério, estamos preferindo atuar no sentido de tentar garantir que, ao menos nesses três casos, o direito ao aborto seja respeitado. Há muitos casos de médicos e hospitais que alegam objeção de consciência, mais no interior, mas também na capital. Inclusive encontramos casos de médicos que se recusam a executar o procedimento em garotas menores de idade que foram estupradas.

O governo anterior abandonou a observação do cumprimento dessas leis. Se houve acompanhamento, foi por parte das organizações feministas e da sociedade, e queremos aumentar nossa presença nessa vigilância.

Ou seja, a prioridade é concentrar-se na execução da lei, não na ampliação dela? Sim, esse tem sido nosso papel. Depois, temos o processo constituinte e novos debates no Congresso que, esperamos, signifiquem avanços nas leis de direitos reprodutivos.

O Chile tem recebido uma quantidade grande de refugiados nos últimos anos. Como isso impacta a garantia dos direitos das mulheres? Assim como outros países da região, estamos vivendo os efeitos da crise migratória derivada em especial pelo modo de atuar do governo da Venezuela, da Nicarágua e da situação no Haiti. Algo que o que temos que garantir, como governo de esquerda que somos, é que essas pessoas tenham acesso a todos os direitos sociais previstos a refugiados.

No que diz respeito às mulheres, a imigração por questões relacionadas a crises humanitárias tem gerado o aumento de delitos antes raros no Chile, como os de exploração sexual para fins comerciais e tráfico de mulheres. Esses problemas precisam ser expostos porque são de nível continental.


Raio-x | Antonia Orellana, 33

Nascida em Santiago, é jornalista formada pela Universidade do Chile com especialização em gestão de mídia. É cofundadora da Convergência Social, partido formado em 2018 a partir da fusão de siglas de esquerda, e é a atual ministra da Mulher e Equidade de Gênero no governo de Gabriel Boric.

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