O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, desobedeceu a lei ao se comprometer a atuar diretamente na polêmica reforma judicial promovida por seu governo. A acusação é da procuradora-geral Gali Baharav-Miara, que advertiu o premiê em carta divulgada nesta sexta-feira (24), aprofundando a crise institucional no país.
Em um aguardado discurso na véspera, Netanyahu defendeu o pacote de leis apresentado por sua coalizão governista, ecoando correligionários ao afirmar que a Suprema Corte tem poderes em excesso e rege, na prática, o país.
Contrariando a expectativa de que recuasse da reforma, considerada uma ameaça à independência do Judiciário, disse ainda que pretende aprovar alguns de seus principais pontos já na próxima semana. "Basta. Para o bem de nossa nação, farei o que for necessário para chegar a uma resolução", afirmou no pronunciamento televisionado.
A Procuradoria-Geral alega, no entanto, que Netanyahu está proibido de se envolver na reforma em razão de um acordo que ele firmou com a Suprema Corte em 2020.
O trato, realizado no âmbito dos processos que o premiê enfrenta por corrupção, determina que, enquanto estiver no poder, ele não pode atuar em prol de projetos de lei capazes de impactar os casos pelos quais é julgado. Do contrário, incorreria em um conflito de interesses.
Para Baharav-Miara, ao menos um dos projetos de lei que constituem a reforma judicial em discussão no Parlamento se encaixa nessa definição. Ele prevê que o governo tenha poder quase absoluto sobre a indicação de juízes, inclusive para a Suprema Corte, mudança que poderia afetar futuras apelações de Netanyahu nos julgamentos hoje em curso.
A procuradora-geral se referiu diretamente à proposta na carta ao premiê. "A situação legal é clara: você precisa se abster de qualquer envolvimento em iniciativas para mudar o Judiciário. Sua declaração de ontem à noite e quaisquer ações futuras que violem esse acordo são absolutamente ilegais e constituem conflito de interesses", escreveu ela.
Ela ainda acrescentou que uma lei aprovada no dia anterior não afetava o acordo do líder com o tribunal. Vista como tendo sido feito sob medida para livrar Bibi, como é conhecido, de possíveis obstáculos legais, ela protege primeiros-ministros de ordens judiciais que os obriguem a deixar o cargo.
Os impactos da suposta infração do acordo por Netanyahu ainda não estão claros. A princípio, ele poderia ser preso por desacato à Justiça se continuar a violar a ordem —o grupo Movimento por um Governo de Qualidade em Israel disse que abriria uma ação nesse sentido, exigindo que ele seja submetido a penas previstas pela lei, que incluem multas e prisão.
Especialistas em direito consultados pelo jornal Times of Israel afirmaram, porém, que é pouco provável que a máxima instância legal do país impeça o premiê de se envolver com a reforma judicial, dada a dimensão que o tema ganhou na nação do Oriente Médio.
O argumento foi evocado em uma mensagem divulgada pelo Likud, partido do primeiro-ministro. Nele, uma pessoa próxima de Bibi negou que ele tenha violado qualquer lei ou acordo em seu pronunciamento da véspera, e afirmou que cabia ao líder alcançar um consenso em um momento de crise nacional.
O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, optou por atacar a procuradora-geral, acusando-a de agir como líder da oposição na prática. "Se Baharav-Miara quer tomar decisões em nome de autoridades eleitas, ela pode fundar um partido e concorrer ao Parlamento," escreveu o ultradireitista no Twitter sobre a autoridade, nomeada pela gestão anterior, de centro-direita.
O pacote de leis apresentado pelo governo se baseia em basicamente dois pilares: modificar a forma como a nomeação de juízes e assessores jurídicos se dá no país, de modo que a coalizão governista tenha prevalência sobre as indicações, e frear a interferência da Suprema Corte sobre as legislações aprovadas no Parlamento.
Especialistas apontam que as mudanças podem comprometer seriamente o equilíbrio dos Três Poderes e, em última instância, pôr em risco o Estado de Direito no país. A medida tem levado milhares de pessoas às ruas nas últimas semanas, e enfrenta resistência inclusive dentro do Exército, instituição central para a sociedade israelense.
Em uma carta que circulou na mídia local no domingo passado, centenas de indivíduos identificados como reservistas voluntários afirmaram que pretendem se negar a comparecer a exercícios militares e a servir caso o projeto do governo avance no Parlamento.
Críticos do plano incluem ainda instituições financeiras e empresários da área de tecnologia de ponta, que alertaram a administração de que ele pode provocar prejuízos à economia israelense. E aliados estrangeiros cruciais como os Estados Unidos —cujo presidente, Joe Biden, chegou a ligar para Bibi esta semana para expressar sua preocupação com a medida.
O primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, foi outro que citou o assunto ao se reunir com o líder israelense em Londres nesta sexta. Um porta-voz de seu gabinete afirmou que o britânico "enfatizou a importância de defender os valores democráticos que sustentam a relação entre os dois países, inclusive no caso da proposta de reforma judicial em Israel" durante o encontro, que durou menos de uma hora.
Netanyahu chegou a abordar a questão dos militares após a reunião, em entrevista à imprensa —ainda que tenha minimizado a oposição ao projeto de sua administração ao alegar que há um outro grupo que pretende deixar o Exército caso a reforma não siga em frente.
"O país não pode existir sem as Forças de Defesa. Não haverá nação, é simples assim. Todos os limites foram extrapolados", disse ele. "Render-se a eles [os militares] é um grande perigo para o Estado de Israel."
Os protestos, aliás, acompanharam Bibi a Downing Street. Centenas de manifestantes o aguardavam perto da sede do governo britânico, recebendo-o com bandeiras de Israel e gritos de "boosha!", vergonha em hebraico.
Também no Brasil entidades judaicas se mobilizam contra a reforma. O Instituto Brasil-Israel (IBI), em parceria com a Comunidade Shalom, a Congregação Israelita Paulista, a Casa do Povo e movimentos juvenis, entre outras organizações paulistas, divulgaram uma carta aberta expressando preocupação com a situação do país.
"Apesar dos desafios incomparáveis enfrentados desde sua criação, os valores democráticos sempre prevaleceram como um pilar da nação judaica", diz o texto, que tem cerca de 1.500 assinaturas. "Na condição de judeus da diáspora, o impacto dos acontecimentos em Israel também se projeta sobre nós. Manifestamos nosso apoio e solidariedade aos israelenses que lutam pela manutenção da democracia, e conclamamos a população judaica brasileira para que faça o mesmo."
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