Iniciativas no Quênia tentam erradicar mutilação genital de mulheres

Governo e outros atores estão determinados a vencer, mas prática lesiva continua arraigada

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Kamau Maichuhie
The Nation

O ex-presidente queniano Uhuru Kenyatta fez história durante a Cúpula Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) de 2019, em Nairóbi, quando prometeu acabar com a mutilação genital feminina (MGF) até 2022. Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 4 milhões de mulheres e meninas no Quênia sofreram a prática, e 21% das mulheres e meninas de 15 a 49 anos foram afetadas.

Apesar dos esforços, a MGF ainda é praticada em partes do país. Nesses lugares, a cifra de casamentos precoces forçados de meninas vem subindo, junto aos problemas de saúde decorrentes do procedimento.

Mulher da tribo Samburu, no Quênia, com ornamentos decorativos na aldeia de Umoja, onde a presença de homens é restrita
Mulher da tribo Samburu, no Quênia, com ornamentos decorativos na aldeia de Umoja, onde a presença de homens é restrita - Monicah Mwangi - 7.fev.23/Reuters

Mas as campanhas de conscientização de agentes estatais e não estatais continuam, voltadas a homens, lideranças comunitárias e até mototaxistas. Veja alguns dos esforços mais notáveis em curso.

#TubongeNaComrades

A fundação Campus Dialogues Men End FGM, entidade que faz lobby para que os homens se aliem à luta contra a MGF, lançou a campanha Campus Dialogues, ou #TubongeNaComrades, para conscientizar estudantes universitários homens sobre os efeitos nocivos da prática.

A sessão inaugural ocorreu em outubro na Universidade de Embu, durante a qual estudantes aprenderam sobre a MGF; a prevalência da prática; seus efeitos sobre meninas e mulheres, incluindo sobre seu prazer nas relações conjugais, e o que constitui um delito nos termos da Lei Anti-MGF de 2011. Outras sessões já foram promovidas em escolas técnicas e vocacionais ou fazem parte de programas de formação.

Peter Kemei, fundador da Men End FGM, no Quênia, durante entrevista em seu escritório, em Nairóbi
Peter Kemei, fundador da Men End FGM, no Quênia, durante entrevista em seu escritório, em Nairóbi - 19.out.21/Reprodução

"Esses estudantes têm muito respeito e influência em suas comunidades, o que é útil para ajudar a vencer a guerra contra a MGF e a violência sexual e de gênero", diz Peter Kemei, diretor de operações da Men End FGM Foundation, que quer estender a campanha aos 22 condados que concentram a prática da MGF.

Aplicativo de celular Pasha

Em outubro de 2022, o Unicef e o Conselho Anti-MGF do Quênia lançaram o aplicativo Pasha, que facilita a denúncia de casos de MGF. Por meio de mensagens de texto ou de voz, usuários podem entrar em contato com agências governamentais, incluindo o Conselho Anti-MGF, que então tomarão as medidas apropriadas. As pessoas podem optar por apenas compartilhar sua localização e permanecer anônimas.

Membros do conselho anti-MGF e autoridades locais durante lançamento do 'Pasha App' na cidade de Maralal
Membros do conselho anti-MGF e autoridades locais durante lançamento do 'Pasha App' na cidade de Maralal - 25.out.22/Grupo de Mídia da Nação

O app já está sendo usado em Kuria e Samburu, duas áreas com alta prevalência de MGF. Bernadette Loloju, CEO do Conselho Anti-MGF, ao comentar o lançamento do aplicativo no condado de Samburu, descreveu o dispositivo como algo que pode virar o jogo. "Peço à população que faça bom uso do aplicativo para salvar meninas em sofrimento. Nossas meninas hoje enfrentam o risco triplo de gravidez na adolescência, HIV e Aids e ainda práticas lesivas como a MGF. Tudo isso precisa ser combatido."

HeForShe

Lançada pelas Nações Unidas em 2014, a HeForShe é uma campanha global que busca mobilizar o apoio dos homens às meninas e mulheres visando a alcançar a igualdade, incentivando todos os gêneros a serem agentes de transformação e a agir contra os estereótipos e comportamentos negativos. No Quênia, ela incentiva meninos e homens a protegerem suas irmãs e filhas contra práticas nocivas como a MGF.

Atores estatais e não estatais estão usando a campanha para mobilizar comunidades. Um deles é o Centro Maria Imaculada de Educação sobre o Resgate de Meninas, em Suguta Mar-Mar, no condado de Samburu, dirigido pela irmã Teresa Nduku, da congregação Irmãs Imaculadas de Nyeri. A freira diz que, desde que foi lançado, em janeiro de 2022, o programa já alcançou 120 garotos de escolas da área.

"Queremos que os garotos aprendam que é errado sujeitar uma menina à mutilação e se casar com ela quando ainda é criança." Ela diz que, quando a entidade conseguir os recursos necessários, pretende estender a iniciativa para todo o país.

Anciões

Engajar anciões, os líderes de vilarejos, à causa do combate à MGF é outra estratégia-chave na luta para acabar com a prática no Quênia. O fato de os anciões serem os guardiões da cultura e aqueles que orientam quais práticas devem ser conservadas torna o apoio deles imprescindível. Até agora, anciões nos condados de West-Pokot, Marsabit, Samburu, Elegeyo-Marakwet e Narok já denunciaram a prática e uniram forças com o governo queniano para erradicá-la.

O caso mais notável é o dos anciões do povo Samburu, que em março de 2022 concordaram em acabar com a MGF e o casamento infantil na Declaração de Kisima, assinada na presença do ex-presidente Kenyatta. Os anciãos vieram das seis montanhas sagradas de Samburu para mostrar o compromisso anti-MGF e anular a maldição cultural tradicionalmente imposta a meninas não submetidas ao procedimento.

Essa maldição tem sido um dos grandes fatores que impulsionam a MGF, mas agora meninas podem recusar a mutilação genital sem serem rejeitadas ou excluídas de celebrações culturais, rituais e outras atividades. A declaração foi firmada no terreiro de Kisima, um local sagrado para os Samburu.

O hoje ex-presidente Uhuru Kenyatta com os anciãos de Samburu durante evento de declaração anti-MGF realizado na área de Kisima
O hoje ex-presidente Uhuru Kenyatta com os anciãos de Samburu durante evento de declaração anti-MGF realizado na área de Kisima - Geofrey Ondieki - 2020/Nation Media Group

"Devemos respeitar a cultura e ao mesmo tempo avaliar as práticas que ferem as meninas para abraçar as que têm valor. Devemos adotar rituais de passagem alternativos que ensinem o respeito pelos mais velhos e pelos valores da vida, sem fazer mal às meninas", disse Kenyatta.

Circuncidadores

O ministério queniano do Serviço Público e do Gênero lidera uma campanha que atinge as pessoas que realizam a MGF ilegal. A estratégia envolve o Fundo de Ação Afirmativa do Governo Nacional (NGAAF), que ajuda essas pessoas a fazerem a transição para outras atividades econômicas. Graças a esses esforços, várias pessoas que faziam circuncisões nos condados de Tana River, Garissa e Marsabit abandonaram esse ofício. Algumas delas começaram a falar contra a prática em suas comunidades.

Outros esforços envolvendo comunidades miram lideranças religiosas, cuja influência nas comunidades é valiosa, e até mesmo os operadores de "boda-bodas". Esses mototaxistas são treinados para resgatar meninas que corram o risco de serem submetidas a MGF e para denunciar os casos às autoridades.

Uma circuncisadora reformada da vila de Leparya
Uma circuncisadora reformada da vila de Leparya, no condado de Isiolo, Margaret Kotol - Mwangi Ndirangu

Apesar dessa abordagem em várias frentes, o Quênia está longe de alcançar a meta de Kenyatta de erradicação total da MGF. Uma pesquisa demográfica e de saúde nacional de 2022 divulgada em janeiro pelo Birô Nacional de Estatísticas indicou que a incidência de MGF diminuiu 6% nos oito anos anteriores –uma queda semelhante ao que foi observado em períodos iguais desde 1998.

Um dos maiores empecilhos ao progresso é a circuncisão internacional, em que pais e anciões levam meninas a países vizinhos para evitar serem processados. Uma condenação por MGF acarreta a punição mínima de três anos de prisão e multa de 200 mil xelins quenianos (US$ 1.600).

Loloju, CEO do Conselho Anti-MGF, diz que a MGF é prática corrente em alguns desses países e que isso, por sua vez, está dificultando o progresso no Quênia. "A MGF internacional é real, mas minha equipe e as agências de segurança estão em campo para garantir a segurança da fronteira", disse ela.

CEO do Conselho Anti-Mutilação Genital Feminina, Bernadette Resian Loloju
A presidente-executiva do Conselho Anti-Mutilação Genital Feminina, Bernadette Resian Loloju, durante lançamento do projeto 'Hooyo Haigoynin' - Lucy Wanjiru - 2.fev.23

Domitila Chesang’, fundadora da I-Am Response Foundation, entidade que faz campanha contra a MGF e o casamento infantil em West Pokot, no Quênia, diz que as práticas internacionais são frequentes na região.

"O único modo de eliminar a MGF internacional é instalar delegacias nos postos de travessia da fronteira. Os postos também precisam contar com seções de gênero para lidar com casos ligados à violência de gênero", disse ela. Chesang’ afirma que a malha rodoviária precária dificulta a vigilância adequada.

O Quênia e quatro outros países do leste da África (Uganda, Tanzânia, Etiópia e Somália) endossaram um plano regional para eliminar a MGF internacional, mas será um empreendimento difícil, dada a prevalência da prática nesses países (ela varia de 0,3% em Uganda a 98% na Etiópia). De acordo com o Unicef, esses países respondem por cerca de 25% (48,5 milhões) das meninas e mulheres circuncidadas no mundo.

Esta reportagem faz parte do projeto Towards Equality, iniciativa internacional e colaborativa que inclui 14 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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Tradução de Clara Allain

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