Ugandenses fogem do país para escapar de legislação intransigente antigays

Parlamento aprovou em março regra que prevê pena de morte ou prisão perpétua a práticas homossexuais

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Mbajjwe Nimiro Wilson, 24, um homem gay de Uganda, em um abrigo no Quênia

Mbajjwe Nimiro Wilson, 24, um homem gay de Uganda, em um abrigo no Quênia Brian Otieno/The New York Times

Abdi Latif Dahir
Nakuru (Quênia) | The New York Times

Num esconderijo espartano sem mobília situado a noroeste da capital do Quênia, Nairóbi, pessoas da vizinha Uganda se agarravam aos poucos objetos que conseguiram carregar quando fugiram de seu país para escapar de uma legislação nova e implacável que as vitima.

Um homem gay segurava o rosário branco que levava à igreja todos os domingos. Uma mulher transgênero preservou seu vestido favorito, azul cintilante. Um casal de lésbicas segurava um smartphone com fotos de tempos mais felizes, em que elas saíam à noite e iam dançar em clubes.

Todos começaram a deixar seu país depois de o Parlamento de Uganda, no final de março, aprovar uma lei antigay abrangente que ameaça com punições tão graves quanto a morte alguns atos vistos como delitos e pede prisão perpétua para qualquer pessoa que tenha relações sexuais homossexuais.

Oboza James, 23, uma mulher trans que por anos sofreu rejeição e abusos de sua família, em um abrigo no Quênia
Oboza James, 23, uma mulher trans que por anos sofreu rejeição e abusos de sua família, em um abrigo no Quênia - Brian Otieno/The New York Times

"O governo e a população de Uganda são contra nossa existência", diz Mbajjwe Nimiro Wilson, 24, que fugiu do país com apenas uma mochila, dias após ser encurralado por uma multidão hostil, que incluía crianças, quando fazia compras em um mercado perto de um abrigo para gays na capital Campala.

"As pessoas diziam ‘vamos te caçar, gays têm de morrer, vamos acabar com vocês. Não tive opção."

A lei, aprovada por 387 votos a favor e dois contra, pune qualquer pessoa que alugue um imóvel a gays e pede a "reabilitação" dos condenados por serem homossexuais. O líder do país, Yoweri Museveni, que elogiou a medida, a mandou de volta ao Parlamento na quinta (20) "para ser aprimorada".

Ele parabenizou legisladores e lideranças religiosas pelo que descreveu como "postura firme" contra pessoas LGBTQIA+. "É bom que vocês tenham rejeitado a pressão dos imperiais", disse em vídeo divulgado pela emissora pública ugandense, aludindo a países do Ocidente. Museveni se manifestou horas depois de o Parlamento Europeu ter denunciado o projeto de lei.

A legislação segue uma enxurrada de discursos antigays que vem percorrendo países africanos nos últimos anos, incluindo Gana, Zâmbia e Quênia. No mês passado, legisladores de mais de uma dúzia de nações do continente se reuniram em Uganda e prometeram apresentar ou aprovar medidas em seus países que, disseram, vão proteger a família e as crianças contra "o pecado da homossexualidade".

As relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo já eram ilegais sob o Código Penal ugandense, mas a legislação nova introduz penalidades muito maiores e amplia muitíssimo a gama do que é visto como delito. E, embora a retórica antigay esteja presente em Uganda há muito tempo, ela se agravou fortemente nos últimos 12 meses, com as autoridades removendo as cores do arco-íris de um parque e pais invadindo uma escola porque pensaram que uma pessoa homossexual desse aulas no local.

A iniciativa mais recente contra pessoas LGBTQ em Uganda recebeu o apoio de grupos cristãos e muçulmanos locais e há anos recebe apoio financeiro e logístico de algumas organizações evangélicas conservadoras dos EUA. Uma das principais entidades organizadoras da conferência parlamentar em Uganda no mês passado foi a Family Watch International, associação sediada no Arizona que divulga posições anti-LGBTQ e antiaborto, segundo a ONG de assistência jurídica Southern Poverty Law Center.

A lei aprovada em Uganda foi condenada por grupos de defesa dos direitos humanos e pela ONU. A gestão Biden a descreveu como uma das medidas antigay "mais extremas" do mundo.

Mbajjwe Nimiro Wilson, 24, um homem gay de Uganda, em um abrigo no Quênia
Mbajjwe Nimiro Wilson, 24, um homem gay de Uganda, em um abrigo no Quênia - Brian Otieno/The New York Times

O senador democrata Bob Menendez, de Nova Jersey, disse que os EUA deveriam reduzir a ajuda militar e impor sanções ao governo de Museveni, no poder há quase quatro décadas. Aliado de segurança dos EUA, o país do leste da África recebe mais de US$ 950 milhões anualmente para a saúde e o desenvolvimento.

Após passar meses fazendo campanha contra a legislação, ativistas dos direitos gays em Uganda pretendem contestar a medida nos tribunais se ela for sancionada. "O que esta lei faz é dar uma base e um contexto legal à homofobia", disse Fox Odoi-Oywelowo, ex-assessor jurídico sênior de Museveni e um dos dois parlamentares que se opuseram a ela. Outros legisladores criticaram Odoi-Oywelowo, acusando-o de receber dinheiro para promover o que descreveram como imoralidade do Ocidente.

O legislador pretende participar da contestação legal da medida. "Se o Estado escolher por quem os seres humanos se apaixonam, isso será a maior anulação possível de nossos direitos mais fundamentais."

Para as pessoas LGBTQ ugandenses, a lei deve formalizar a discriminação ampla e irrestrita que muitos já sentem diariamente. Entrevistados, mais de uma dúzia de ugandenses gays que fugiram para o Quênia descreveu como amigos, familiares e vizinhos se voltaram contra eles nos últimos 12 meses, à medida que o sentimento antigay renovado se espalhou pelo país conservador.

No Parlamento, legisladores promoveram a alegação infundada de que há uma conspiração para promover a homossexualidade nas escolas. Autoridades demonizaram gays na televisão e nas redes sociais. Um oficial militar recomendou que se negasse atendimento médico a eles. Muçulmanos promoveram marchas nas ruas contra pessoas LGBTQ, e, em igrejas cristãs, clérigos exortaram fiéis a ficarem atentos para esforços para atrair seus filhos para a homossexualidade.

Em agosto passado, as autoridades adotaram a ação mais drástica até então, fechando o principal grupo nacional de defesa dos direitos dos gays, Sexual Minorities Uganda. Em março, depois de o Parlamento ter aprovado o projeto de lei, dezenas de pessoas LGBTQ começaram a fugir para o vizinho Quênia, devido à proximidade geográfica e à presença nesse país de uma rede forte de defesa dos direitos humanos.

Uma das cláusulas do projeto de lei antigay de Uganda é a proibição do que ele descreve como a "promoção" da homossexualidade. Advogados disseram que essa cláusula pode colocar ativistas e agências humanitárias que defendem os direitos de gays em risco de responsabilidade criminal.

Essas entidades em risco podem atuar com programas de saúde financiados pelos EUA que trabalham com pessoas LGBTQ visadas e atacadas quando o país promulgou leis semelhantes, em 2014, que foram derrubadas pelos tribunais. Em declaração à imprensa, um porta-voz do Departamento de Estado disse que, se o projeto de lei for ratificado, isso vai "comprometer gravemente" o financiamento do Pepfar, programa americano que fornece tratamento contra HIV a milhões de pessoas. Também prejudicaria o progresso de Uganda em direção à meta de eliminar a Aids como ameaça à saúde pública até 2030.

A legislação ugandense já está inspirando outros países no continente, incluindo o Quênia, onde uma decisão recente da Suprema Corte havia permitido a organizações de defesa dos direitos de gays se registrar legalmente –uma decisão fortemente criticada pelo presidente e outros.

Um parlamentar introduziu então uma projeto semelhante ao de Uganda, que visa a criminalizar a homossexualidade, proibir qualquer pessoa de se identificar com LGBTQ e dar ao público o poder de prender qualquer pessoa suspeita de ser homossexual. A iniciativa também quer proibir o ensino sobre saúde e direitos reprodutivos em escolas. "Essas pessoas são pervertidas. Vou legislar para tirar delas todo direito que pensam possuir", disse em entrevista o legislador queniano George Peter Kaluma.

Ele disse que seu projeto de lei também prevê que refugiados perseguidos por suas orientações sexuais, muitos dos quais em campos espalhados pelo Quênia, sejam devolvidos a seus países de origem. Sem evidências, acusou a gestão Biden e os democratas de financiá-los para promover a homossexualidade no Quênia. Kaluma também prometeu que em breve haverá leis semelhantes em vigor em toda a África.

"Elas vão se espalhar como um vendaval", disse.

Esse aviso semeou o medo entre ugandenses LGBTQ, que disseram ter dado um suspiro de alívio quando primeiro atravessaram a fronteira do Quênia. Muitos deles já estão pensando sobre onde devem ir agora.

Tradução de Clara Allain 

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