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Por que Coreia do Sul paga jovens reclusos para saírem de casa

Muitos sul-coreanos optam por se isolar e se retirar de sociedade que castiga quem não corresponde às expectativas

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Seul e Singapura | BBC News Brasil

Em 2019, Yoo Seung-gyu, 30, deixou seu pequeno apartamento na Coreia do Sul pela primeira vez em cinco anos. Primeiro ele fez uma faxina em seu "apartamento bagunçado", com ajuda de seu irmão.

Em seguida, saiu em direção ao mar para uma viagem de pesca, com outros reclusos que conheceu por meio de uma organização sem fins lucrativos. "Foi uma sensação estranha estar no mar, mas muito revigorante após a reclusão. Parecia surreal, mas com certeza eu estava lá. Estava existindo", disse Yoo.

Menino oriental de camisa cinza e óculos sozinho em meio a rua na Coreia do Sul
Yoo Seung-gyu ficava isolado em seu quarto - e evitava até o banheiro para não ver a família - BBC News Brasil

Um número crescente de jovens sul-coreanos tem optado por se isolar, retirando-se totalmente de uma sociedade que castiga aqueles que não correspondem às expectativas.

Essas pessoas reclusas são conhecidas como hikikomori, um termo cunhado pela primeira vez no Japão na década de 1990 para descrever a reclusão radical de adolescentes e jovens adultos.

Na Coreia do Sul, que luta contra a taxa de fertilidade mais baixa do mundo e um declínio da produtividade, isso se tornou uma preocupação séria. Tanto que as autoridades estão oferecendo aos jovens reclusos um dinheiro mensal extra para convencê-los a sair de casa.

Pessoas de 9 a 24 anos de famílias de baixa renda podem receber até 650 mil won (R$ 2.400) como ajuda mensal. Eles também podem solicitar subsídios para uma série de serviços, incluindo saúde, educação, aconselhamento, serviços jurídicos, atividades culturais e até "correção de aparência e cicatrizes".

Esses incentivos visam a "permitir que jovens reclusos recuperem suas vidas diárias e se reintegrem à sociedade", segundo o Ministério da Igualdade de Gênero e Família da Coreia do Sul.

O governo define jovens reclusos como "adolescentes que vivem em um espaço confinado por um longo período de tempo, isolados do mundo exterior e com dificuldade significativa em levar uma vida normal".

No entanto, gastar dinheiro com esse problema não faz com que ele desapareça, dizem os jovens que se isolaram. Yoo agora dirige uma empresa que apoia jovens reclusos chamada Not Scary —em uma vida muito diferente dos dias em que não saía de seu quarto nem mesmo para usar o banheiro.

No entanto, sua jornada para abandonar os anos de reclusão foi cheia de altos e baixos. Ele se retirou do mundo exterior pela primeira vez quando tinha 19 anos, saiu da reclusão por dois anos para prestar o serviço militar obrigatório e depois se isolou novamente por dois anos.

Park Tae-hong, 34, outro ex-recluso, disse que o autoisolamento pode ser "reconfortante" para algumas pessoas. "Quando você tenta coisas novas, é emocionante, mas ao mesmo tempo você precisa suportar algum nível de fadiga e ansiedade. Quando você está apenas no seu quarto, não precisa sentir isso. Mas não é bom no longo prazo", diz ele.

Cerca de 340 mil pessoas de 19 a 39 anos no país —ou 3% dessa faixa etária— são consideradas solitárias ou isoladas, de acordo com o Instituto Coreano de Saúde e Assuntos Sociais.

A pesquisa também mostrou uma proporção crescente de famílias de uma pessoa só na Coreia do Sul, representando cerca de um terço das unidades familiares inteiras em 2022. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que tiveram "mortes solitárias" no país aumentou.

O dinheiro, ou a falta dele, não é o que leva os jovens à reclusão. "Eles vêm de origens financeiras variadas", disse Park. "Eu me pergunto por que o governo liga reclusão a situação financeira. Nem todo jovem recluso está tendo dificuldades financeiras. Indivíduos que precisam desesperadamente de dinheiro podem ser forçados a se adaptar à sociedade. Existem muitos casos diferentes."

Imagem de um quarto bagunçado, cheio de itens espalhados
O quarto de Yoo há dois anos, quando o jovem raramente saía dele - BBC News Brasil

Tanto ele quanto Yoo, por exemplo, eram sustentados pelos pais quando estavam em reclusão.

O que é comum entre os jovens reclusos é a crença de que eles não viveram de acordo com os padrões de sucesso da sociedade —ou de suas famílias. Alguns se sentem desajustados porque não estão seguindo carreiras convencionais, enquanto outros podem ter sido criticados por notas acadêmicas baixas.

Yoo disse que entrou na universidade porque era o desejo de seu pai, mas desistiu depois de um mês. "Ir para a universidade me deixava com vergonha. Por que não pude ter a liberdade de escolher [meu curso de estudo]? Eu me sentia muito infeliz." Ele também diz que nunca sentiu que poderia falar com seus pais sobre isso. "A cultura da vergonha na Coreia torna mais difícil para os reclusos falarem sobre seus problemas", disse Yoo. "Um dia, cheguei à conclusão que minha vida estava errada e comecei a me isolar."

No seu isolamento, ele não ia nem ao banheiro porque não queria ver seus parentes.

Para Park, a pressão social foi agravada por um relacionamento tenso com a sua família. "Minha mãe e meu pai brigavam com frequência desde que eu era criança. Isso também afetou minha vida na escola —a escola na Coreia às vezes pode ser muito difícil. Eu não conseguia cuidar de mim mesmo." Ele começou a fazer terapia em 2018, quando tinha 28 anos, e agora está retomando a vida social aos poucos.

Os jovens na Coreia do Sul se sentem oprimidos porque a sociedade espera que as pessoas sejam de uma certa maneira em uma certa idade, diz Kim Soo Jin, gerente sênior da Seed:s, agência especializada em programas para hikikomori. "Quando eles não conseguem corresponder a essas expectativas, eles pensam 'eu fracassei, 'cheguei tarde demais para isso' —esse tipo de atmosfera social deprime sua autoestima e pode eventualmente isolá-los da sociedade", afirma ela.

A Seed:s administra um espaço físico em que os reclusos podem descansar, ter momentos de silêncio e buscar aconselhamento. Seus programas são abertos a todos, independentemente de seu nível de renda.

Uma sociedade na qual os jovens podem encontrar maior variedade de empregos e oportunidades de educação seria mais acolhedora para indivíduos reclusos, diz Kim. "Jovens reclusos querem um local de trabalho em que possam pensar: 'Ah, eu posso fazer isso, não é tão difícil. Acho que posso aprender mais aqui e depois entrar no mundo real'", disse ela.

Park também espera que um dia a sociedade coreana possa ser mais receptiva aos jovens com interesses que estão fora do usual. "No momento, apenas os obrigamos a estudar. Precisamos dar aos jovens a liberdade de encontrar coisas de que gostem e nas quais sejam bons", diz ele.

Os subsídios podem ser um "primeiro passo" para resolver o problema, mas alguns afirmam que o dinheiro pode ser melhor empregado. Dizem que o financiamento de órgãos e programas voltados para jovens reclusos, oferecendo-lhes aconselhamento ou treinamento profissional, teria um impacto mais amplo.

"O próximo passo deve ser preparar programas nacionais gratuitos e de alta qualidade para jovens reclusos. No momento, há um número muito limitado de programas e centros nos quais jovens reclusos podem participar e sentir que pertencem à sociedade", diz Kim Hye Won, diretora-chefe do PIE for Youth, organização que oferece programas para jovens reclusos e seus cuidadores.

Ainda assim, ela elogia o fato de o governo sul-coreano estar tentando resolver o problema na adolescência. "É bom ver que [as novas medidas] focam os adolescentes. A adolescência é o momento de ouro para evitar a reclusão, porque a maioria dos adolescentes faz parte de uma comunidade, como a escola. Depois disso, fica muito difícil encontrar essas pessoas."

Yoo disse ter emergido do isolamento gradualmente. O que o ajudou, conta ele, foi conhecer ex-reclusos por meio de um grupo de reabilitação agora extinto chamado K2 International. "Depois que recebi ajuda de outras pessoas, comecei a perceber que este não é apenas um problema meu, mas um problema da sociedade", disse. "E finalmente consegui sair da reclusão lentamente."

Este texto foi originalmente publicado aqui.

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