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América Latina

Como a direita tradicional pode salvar a Constituição chilena do retrocesso

Se houver mediação, tendência é que nova Constituição seja mais enxuta e mais fácil de ser aceita pela população

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Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor-executivo da Veja. É mestre em Relações Internacionais pelo IRI-USP

O presidente do Chile, Gabriel Boric, matou no peito a derrota acachapante de sua coalizão de esquerda na eleição para o Conselho Constitucional, no domingo (7), e aproveitou para fazer um alerta preventivo aos grandes vitoriosos, os representantes do partido de ultradireita: "Quero convidar o Partido Republicano a não cometer o mesmo erro que nós cometemos. Este não pode ser um processo de vinganças, mas de colocar o Chile e seu povo à frente de interesses partidários ou pessoais."

A declaração de Boric, feita poucas horas após o fechamento das urnas, faz referência a outras duas derrotas. Uma já consolidada, a do plebiscito de setembro de 2022, em que os chilenos rechaçaram a Constituição ultraprogressista produzida pela constituinte anterior e por cuja aprovação Boric fez campanha. A outra, potencial, é a das próximas eleições presidenciais, ainda distantes, em novembro de 2025. Se fossem realizadas hoje, segundo as pesquisas mais recentes, seriam vencidas com folga pelo republicano José Antonio Kast, que Boric derrotou em 2021.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, durante visita oficial à Cidade do México - Henry romero - 23.nov.22/Reuters

Boric e a esquerda chilena temem que os correligionários de Kast no Conselho Constitucional produzam uma nova Carta Magna à sua imagem e semelhança, ou seja, excessivamente conservadora e com retrocessos concretos no que se refere a direitos para a população, em especial para as minorias.

Afinal, os republicanos conquistaram 45% das 51 cadeiras do conselho (o número inclui a cadeira adicional conquistada por um representante indígena), o que lhes dá o poder de vetar qualquer texto que emerja das discussões. Por outro lado, a esquerda, com um terço dos assentos, não terá a mesma capacidade de veto.

Os fiéis da balança serão os representantes da direita tradicional. A união dessa ala com a ultradireita resultaria em um bloco com mais de três quintos dos votos, o suficiente para aprovar uma nova Constituição sem precisar fazer qualquer concessão à esquerda.

O balanço dessa distribuição de forças leva à certeza de que, por um lado, a nova Carta não terá a profusão de novos direitos que se tentou estabelecer com a proposta que foi rechaçada. E, por outro lado, faz crer que, dificilmente, direitos conquistados pelos chilenos nos últimos anos serão retirados.

O texto constitucional recusado era quase tão inchado quanto o brasileiro e continha mais do que o dobro do número de palavras da Carta atualmente vigente no país. Previa vasta gama de novos direitos bem-intencionados, mas vagos (como a morar ou desfrutar de cidades, à neurodivergência, a fazer esportes e a ser cuidado do nascimento até a morte, entre muitos outros) e, por isso, impossíveis de serem aplicados.

Eis o erro da esquerda mencionado por Boric neste domingo: ela acreditou que as grandes mobilizações populares de 2019 e que a vitória presidencial em 2021 representavam um cheque em branco para produzir um texto progressista, sem atentar para anseios dos setores mais conservadores da sociedade.

Os protestos de 2019, do qual emergiram lideranças como o próprio Boric, sustentavam-se no desejo legítimo de querer uma Constituição nova. Mas criaram a ilusão de que os problemas do país seriam extintos magicamente com a troca de uma Constituição por outra. O texto atual, aliás, já foi reformado algumas vezes, para melhor. E ele não impediu que algumas conquistas sociais e culturais fossem obtidas desde então por força de lei, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Estará nas mãos dos constituintes da direita tradicional, também chamada no Chile de "direita democrática", portanto, resguardar direitos conquistados nas últimas décadas. Eles terão dois incentivos para não aderir completamente à pauta do Partido Republicano. O primeiro é a necessidade de manter uma identidade própria, e assim sobreviver politicamente. O segundo é a oportunidade de contribuir para um proposta de Constituição que possa, no plebiscito marcado para dezembro, finalmente ser aprovado.

A questão do aborto é um exemplo de como isso pode ocorrer. O Partido Republicano é radicalmente contra, mesmo com as restrições atuais. Mas as pesquisas mostram que mais da metade da população é favorável, pelo menos em algumas circunstâncias. Se tentarem tornar a prática inconstitucional, os republicanos podem criar um cavalo de batalha para a esquerda fazer campanha pela reprovação do texto.

A tendência, portanto, se a centro-direita assumir um papel moderador nas discussões da Constituinte, que ademais contará com uma pré-proposta elaborada por especialistas, é a de que a nova Constituição seja mais enxuta, mais focada em direitos básicos e na organização das instituições democráticas. E mais fácil de ser aceita pela maioria da população.

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