Antigo espaço de tortura, 'porão de horrores' une passado e presente da Coreia do Sul

Albergue Municipal da Juventude de Seul abrigou agência coreana nos anos autoritários do pós-guerra

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Lauretta Charlton
Seul

Localizado no centro de Seul, o hostel é muito bem recomendável. Os quartos são arrumados e acessíveis para fanáticos do K-pop com orçamento limitado ou famílias que precisam de mais espaço nas férias. Está localizado na base do Monte Namsan, o arborizado pico no coração da capital da Coreia do Sul. E tem até uma cobertura com vista panorâmica da cidade.

Só não tente ir ao porão.

Com suas trilhas sinuosas e flores de cerejeira na primavera, a montanha tem sido um dos principais destinos de turistas em Seul. Não muito tempo atrás, porém, "ir para Namsan" significava algo sinistro.

A expressão era normalmente usada durante os anos autoritários do pós-guerra da Coreia do Sul como um eufemismo para "levar manifestantes pró-democracia à sede da Agência de Inteligência Coreana (KCIA) e interrogá-los". A tortura era comum, e um dos locais preferidos era o porão do Albergue Municipal da Juventude de Seul, que já abrigou a KCIA.

The Seoul Youth Hostel
O Albergue Municipal da Juventude de Seul já abrigou a Agência de Inteligência Coreana, na base do Monte Namsan - Chang W. Lee - 9.jun.23/The New York Times

O prédio agora é um símbolo da relação complexa do país com o passado e o presente. No entanto, a história vergonhosa do albergue não parecia registrada pelos hóspedes que perambulavam pelo saguão numa tarde recente, enquanto pediam toalhas de banho na recepção e tiravam fotos em grupos.

O caminho agradável e sombreado que leva ao albergue é repleto de indícios sutis e às vezes irreconhecíveis da história coreana. Uma pequena placa no chão está gravada com as palavras "Trilha da Humilhação Nacional", como referência ao local próximo onde o general-residente japonês da Coreia viveu durante a ocupação japonesa da Península Coreana, que terminou em 1945.

O Edifício do Sexto Bureau, outro local de tortura da KCIA, também fica nas proximidades. Com seu distinto exterior vermelho, esse prédio hoje tem um bunker de interrogatório simulado que os visitantes podem conhecer enquanto escutam vozes sinistras reproduzidas em caixas de som no alto.

Em coreano, o número 6 é pronunciado "yuk", que é outra palavra para "carne". "Eles dizem que as pessoas eram levadas para o Sexto Bureau para serem massacradas como carne", disse Yang Seung-phil, ex-gerente do albergue.

Durante a Guerra da Coreia, o país foi praticamente arrasado e, como um dragão saindo de uma vala –um velho ditado coreano–, uma nova nação nasceu. Observar o que resta e o que está arruinado ou destruído é um exercício de compreensão da identidade nacional.

"A história não é sem palavras; é apenas quando não se fala nela que fica em silêncio", diz um folheto do memorial do Edifício do Sexto Bureau.

Edifício do Sexto Bureau já foi local de tortura da KCIA. O prédio agora tem um bunker de interrogatório simulado - Chang W. Lee - 9.jun.23/The New York Times

Em Seul, arranha-céus reluzentes erguem-se sobre ruínas mantidas cuidadosamente que datam da dinastia Joseon, que governou a Coreia do século 14 até o início do século 20, quando o país se tornou um protetorado japonês. A ocupação durou mais de três décadas, antes de o Japão se render aos Aliados no final da Segunda Guerra Mundial.

A Coreia foi então abalada por uma guerra civil entre os comunistas do Norte e as forças apoiadas pela ONU no Sul. A violência deixou a península partida ao meio.

A KCIA já foi a instituição mais poderosa da Coreia do Sul. Foi criada em 1961 com a ajuda do governo dos EUA após um golpe bem-sucedido liderado pelo ditador sul-coreano Park Chung-hee. Um funcionário do Departamento de Estado certa vez descreveu a agência coreana como "uma combinação da Gestapo com a KGB soviética".

As práticas da instituição também incluíam extorsão, lobby de legisladores americanos e intimidação a imigrantes coreanos nos Estados Unidos.

A sede em Namsan foi construída em 1973. Nesse mesmo ano, Choe Jong-gil, professor de direito da Universidade Nacional de Seul, foi torturado até a morte durante o interrogatório. Alguns historiadores acreditam que ele foi a primeira vítima fatal no local. Já o governo de direita alegou que ele causou a própria morte ao pular de uma janela.

"No caso de Namsan, é realmente meio promíscuo o modo como o passado e o presente interagem", disse Bruce Cumings, historiador e autor de "Korea's Place In the Sun" [O lugar da Coreia ao sol]. "O maior santuário xintoísta japonês durante o período colonial ficava em Namsan. Foi destruído imediatamente após a libertação em 1945."

Caixa de correio solicita aos visitantes que deixem cartas refletindo sobre os direitos humanos do lado de fora do Albergue da Juventude de Seul - Chang W. Lee - 9.jun.23/The New York Times

Em seu lugar, o governo coreano construiu uma grande estátua de An Jung-geun, o nacionalista coreano que assassinou o primeiro-ministro japonês Ito Hirobumi em 1909. "Então eles substituíram um símbolo japonês por um dos maiores símbolos da resistência coreana aos japoneses", disse Cumings.

O KCIA passou por uma série de mudanças após o movimento pró-democracia da Coreia do Sul. Hoje, é chamado de Serviço Nacional de Inteligência.

No albergue, os funcionários são rápidos em sorrir e cumprimentar os hóspedes. Os quartos são simples, com paredes nuas e beliches, o que torna difícil imaginar o sofrimento que já aconteceu nesses aposentos. A maioria dos visitantes desconhece a história.

Han Hong-gu, professor de história da Universidade Sungkonghoe, em Seul, disse que o albergue deveria ser transformado num museu dedicado à democratização da Coreia do Sul. Em 2009, quando o governo da cidade de Seul considerou destruir os antigos prédios da KCIA em Namsan, Han, 63 anos, organizou uma campanha contra o plano.

"Alguns edifícios devem ser mantidos para ensinar lições de história às gerações posteriores", disse ele. "Um local de história sombria deve ser preservado."

Perto da entrada do albergue, uma caixa de correio comum convida os visitantes a escrever cartas refletindo sobre os direitos humanos. Hwang Eui-sun, que costumava trabalhar no hostel como presidente da organização sem fins lucrativos, disse que a caixa de correio não tinha nenhuma função real atualmente, mas estava lá como um "símbolo de lembrança do caminho para a democracia".

Essa caixa de correio estava cheia de teias de aranha.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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