Mulheres na Índia viram 'viúvas' de maridos vivos que as deixam para sair do país

Estado de Punjab, tomado por desemprego e problemas com drogas, reflete drama crônico registrado em toda a nação

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Sameer Yasir
Gurdaspur (Índia) | The New York Times

Como muitas outras mulheres no estado de Punjab, uma espécie de centro de emigração na Índia, Sharndeep Kaur desejava se casar com um indiano que trabalhasse no exterior e segui-lo para uma vida mais próspera em outro país. Em janeiro de 2014, ela pensou que seu sonho havia se realizado: em um templo sikh, casou-se com Harjinder Singh, que acabara de voltar da Itália, e foi morar com a família dele.

Depois de alguns dias, entretanto, seus sogros começaram a exigir cerca de US$ 10 mil (R$ 48 mil) para que seu marido pudesse se estabelecer no Canadá. Quando ela não conseguiu o dinheiro, eles a espancaram e a fizeram passar fome, de acordo com a denúncia registrada na polícia.

A indiana Kulwinder Kaur segura foto de marido que a abandonou durante 20 anos em Punjab para trabalhar na Itália
A indiana Kulwinder Kaur segura foto de marido que a abandonou durante 20 anos em Punjab para trabalhar na Itália - Priyadarshini Ravichandran/The New York Times

Oito semanas após o casamento, o marido voltou a trabalhar na Itália. Kaur nunca mais o viu.

"Os dias se transformaram em semanas e depois em meses", diz ela em sua casa no vilarejo de Fateh Nangal. "E meus olhos continuaram procurando por ele." Kaur está longe de ser única em sua tristeza.

Dezenas de milhares de indianas foram abandonadas por maridos que trabalham no exterior, segundo funcionários do governo e ativistas, prendendo muitas delas nas casas dos sogros, conforme os costumes locais. Algumas mulheres que foram deixadas para trás são vítimas de promessas descumpridas da mudança de circunstâncias. Outras foram submetidas a enganos absolutos, suas famílias fraudadas em dotes, despesas de lua de mel e pagamento de vistos.

Existem poucos recursos legais específicos disponíveis para mulheres cujos maridos fogem, e processar os homens sob leis mais gerais pode ser difícil se eles estiverem no exterior. Mas oito mulheres entraram com uma petição na Suprema Corte num esforço para pressionar o governo a adotar políticas para lidar com o que consideram um problema generalizado.

Um ex-juiz que chefiou uma comissão que investiga a questão em Punjab disse que havia 30 mil casos desse tipo apenas nesse estado. Embora Punjab, o único estado de maioria sikh da Índia, possua terras agrícolas entre as mais ricas do país, a região luta contra o desemprego e o abuso de drogas.

Outdoors promovendo centros de treinamento em inglês e firmas de consultoria de vistos são evidências de um êxodo para o exterior. Os jovens muitas vezes forçam parentes mais velhos a vender terras para que possam emigrar. Em uma tarde recente, numa rotatória em Kotli, vilarejo cercado de campos de arroz e cana-de-açúcar, uma dúzia de homens mais velhos estava sentada sob uma árvore, discutindo problemas dos agricultores: baixa renda, montanhas de dívidas e, em alguns casos, suicídio.

"É por isso que todo mundo quer sair de Punjab para realizar seu sonho do dólar", disse o professor aposentado Satnam Singh, 65. "E essas mulheres são, em parte, resultado dessas aspirações."

Ele disse que alguns maridos queriam honrar a promessa de levar suas esposas para o exterior, mas imprevistos ou regras rígidas de imigração os impediram de fazê-lo. Especialistas descrevem um padrão mais preocupante, também notado em entrevistas com 12 mulheres.

A situação muitas vezes acontece assim: os pais combinam o casamento da filha com um indiano que voltou do exterior. Eles pagam um dote, prática banida há muito tempo na Índia, mas ainda comum. Segue-se um luxuoso casamento, com dias de comida, bebida alcoólica e dança ao som de música punjabi. Depois vem a lua de mel, também paga pela família da noiva. O marido viaja, e a esposa espera o visto enquanto mora com os sogros, que pedem dinheiro para tirar o visto que nunca chega. A esposa, muitas vezes analfabeta, é mantida sob vigilância para a controlarem, prejudicando-a psicologicamente.

Para Kaur, que fugiu da casa dos sogros depois de cinco meses, foi "como viver num calabouço escuro". Outros perigos também podem estar à espreita. Algumas mulheres reclamam "de serem exploradas sexualmente por outros membros da família dos maridos, porque não têm para onde ir", diz Rakesh Kumar Garg, juiz aposentado que até recentemente chefiava a comissão estadual sobre o assunto.

Em vários casos, os homens usaram o dinheiro do dote para pagar agentes de imigração para desembarcar em países ricos, como o Canadá, onde os sikhs representam cerca de 2% da população.

"Os rapazes vêm, divertem-se e vão embora com o dinheiro do dote", diz Garg. "Então se casam novamente em países estrangeiros para obter a cidadania. É simplesmente traição."

Algumas mulheres estão lutando para que os passaportes de seus maridos sejam apreendidos. Ravneet Khural, professora de inglês, envia lembretes por email todas as semanas às autoridades pedindo que cancelem o passaporte de seu marido, Harpreet Singh Dhiman.

Isso é possível sob uma lei federal que pode ser usada para revogar os passaportes de indianos que foram para o exterior e deixaram as esposas se os maridos se recusarem a comparecer perante os juízes.

Os pais de Dhiman se mudaram para o Canadá com visto de negócios após o casamento de Khural em 2015. Depois de morar em diferentes países e fazer viagens ocasionais de volta à Índia para visitar parentes e sua mulher, Dhiman juntou-se aos pais no Canadá em 2021. Khural diz ter pago cerca de US$ 8.000 (R$ 38 mil) aos sogros pela papelada e pelo visto. Seu sogro, Kesar Singh, nega a afirmação.

"Deixe que ela prove", diz Singh, acrescentando que seu filho pediu o divórcio antes de deixar a Índia porque o casal não se dava bem. Khural afirma que recebeu uma notificação de um advogado sobre o pedido de divórcio no final do mês passado. Nesses casos, as mulheres raramente pedem o divórcio, por razões culturais e financeiras.

Khural apresentou uma queixa à polícia, acusando o marido de violência doméstica —a polícia costuma abrir investigações sob tais acusações devido à falta de leis específicas para maridos fugitivos— e de mantê-la sob vigilância com câmeras. O caso, como a maioria na Índia, está avançando lentamente.

"Quero ensinar uma lição a ele", diz ela, "para que se lembre para sempre do que fez comigo".

Harjinder Singh, o trabalhador na Itália casado com Kaur, diz que também enfrentou um caso de violência doméstica depois que sua esposa apresentou queixa. Em entrevista por telefone, ele se recusou a apresentar seu lado da história ou a explicar o abandono da esposa. "Não tenho nada a acrescentar."

Em uma noite recente, Kaur estava no terraço da casa de seus pais quando um homem de camisa branca caminhou por uma trilha no meio dos campos de trigo atrás da casa.

"Gostaria que fosse ele", disse ela. "Mas sei que nunca mais vai voltar."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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