Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Guerra da Ucrânia faz Alemanha adotar política de defesa inédita

Rússia é prioridade em documento, primeiro da história do país, que se afasta do pacifismo

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São Paulo

Em mais uma demonstração patente de como a Guerra da Ucrânia alterou a geografia política do mundo, a Alemanha divulgou nesta quarta (14) a primeira Estratégia de Segurança Nacional de sua história.

O documento vinha sendo discutido havia anos, mas foi a invasão promovida por Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022 que o tornou prioritário. O texto coloca a Rússia como a maior ameaça à segurança europeia e sugere que a China, maior aliada de Moscou, pode ser um fator de desestabilização —mas sem acusações frontais, dados os laços comerciais e políticos com Pequim.

Caças F-35 da Guarda Aérea Nacional dos EUA participam do exercício Air Defender 23, na base aérea de Spangdahlem, na Alemanha
Caças F-35 da Guarda Aérea Nacional dos EUA participam do exercício Air Defender 23, na base aérea de Spangdahlem, na Alemanha - Jana Rodenbusch/Reuters

Até aqui, a Alemanha seguia as estratégias da Otan, a aliança que integrou em 1955, dez anos após a derrota do nazismo na Segunda Guerra. O trauma nacional tem várias camadas, mas na superfície política o pacifismo e a adesão ao multilateralismo em nome da estabilidade na Europa sempre prevaleceram.

Isso, claro, escamoteava alguns fatos, como o de que a Alemanha é uma das maiores exportadoras de armas do mundo. Ocupa o quinto lugar do ranking do Instituto de Pesquisas da Paz de Estocolmo, com 4,2% do mercado global de 2018 a 2022 —atrás de EUA, Rússia, China e França.

Ao longo dos anos, num processo que explodiu com a demissão da ministra da Defesa no início deste ano, deixou as prioridades de segurança nas mãos de aliados, focando a pujança de maior economia europeia. De tempos em tempos, como nos anos de Trump presidente (2017-2021), era acusada de leniência.

Mas foi a guerra o gatilho. Logo depois da invasão, o recém-empossado premiê Olaf Scholz fez o famoso discurso em que proclamou a "virada de era" e anunciou um fundo de € 100 bilhões (R$ 520 bilhões na cotação atual) para a compra de caças americanos F-35 e europeus Thyphoon, helicópteros e outros produtos. Prometeu gastar mais de 2% do Produto Interno Bruto, a meta da Otan, a partir de 2024.

Tendo despendido 1,3% do PIB com defesa em 2022, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres, Scholz parece ter adequado seu discurso no documento. Ele prevê um "gasto médio de 2% ao longo de anos" a partir de 2024, o que é algo diferente da promessa anterior.

O país tem, no ranking britânico, o sétimo lugar em orçamento militar em 2022 (US$ 53,4 bilhões, ou R$ 258,7 bilhões), com gasto real aferido de US$ 59 bilhões (R$ 285,8 bilhões). Soma 16% do gasto europeu com defesa, o que por sua vez equivale a aproximadamente metade do que aplicam no setor os EUA.

"Esta é uma grande mudança em como lidamos com a política de segurança", disse Scholz, que desde que assumiu a cadeira de Angela Merkel no final de 2021 enfrenta acusações de prometer muito e entregar pouco, em especial na ajuda militar a Kiev. Até um verbo, "scholzar", foi criado em forma de meme para tal.

Nas últimas semanas, discursos crescentemente agressivos do primeiro-ministro têm gerado especulação acerca de eventuais novos rumos —ou apenas a conveniência política.

Além da questão de gastos e prioridades, a estratégia aborda outros riscos percebidos, notadamente a crise climática e o risco de emergências sanitárias, uma obrigação de países após a eclosão da Covid.

Pequim, a rival estratégica de Washington e aliados na Guerra Fria 2.0, surge como uma preocupação. "Um documento só sobre a China será elaborado", afirmou Scholz. Ele, assim como o presidente francês, Emmanuel Macron, mantém uma relação cuidadosa com Xi Jinping.

Do ponto de vista histórico, é algo a ver se as mudanças irão de fato marcar uma nova era. Isso traz muitas implicações, como seria natural quando o assunto é o país que gestou a Primeira Guerra (1914-18) no militarismo radical da elite prussiana que o comandava e o segundo conflito global na distopia nazista.

Por óbvio, a Alemanha é parte da Otan e submissa, no fim do dia, aos desígnios de Washington nessa área. Mas tenta tirar sua musculatura militar da flacidez que a caracterizou, com forças de 183 mil militares consideradas pouco eficazes. Sedia o maior exercício aéreo da história da Otan, o Air Defender 23, com 250 aeronaves de vários países, 80 das quais alemãs, em simulações de ataque e contra-ataque.

Há muito simbolismo em jogo. Neste momento, tanques de fabricação alemã Leopard-1 e Leopard-2, que Berlim demorou um ano para liberar o fornecimento por aliados a Kiev, pontificam a contraofensiva ucraniana contra áreas ocupadas por Moscou no sul e no leste do país.

Para adensar o roteiro, os combates ocorrem justamente onde houve algumas das mais sangrentas batalhas blindadas da Segunda Guerra Mundial entre nazistas e soviéticos. E a Ucrânia não ajuda ao pintar, ao lado de seus tanques, cruzes brancas que lembram claramente as usadas pela Wehrmacht (as Forças Armadas de Adolf Hitler), dando gás para a retórica de Putin que acusa Kiev de neonazismo.

Os dilemas não são só europeus. O Japão, cujo pacifismo nasceu tanto da imposição americana como da rejeição pela destruição que a guerra teve após o militarismo do início do século 20 e pela aliança com os nazistas, também mudou de orientação com anuência de Washington, no contexto do embate anti-China.

Em um sinal eloquente do caráter global das mudanças, a Otan deverá abrir um escritório em Tóquio, segundo a imprensa japonesa, e aviões do país asiático estão participando do Air Defender 23.

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