Mulheres na Mauritânia trocam vergonha e remorso por festas de divórcio

Em vez de carregar estigma, divorciadas mauritanas se reúnem para celebrar fim de casamentos e pensar se querem mais um

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Ouadane (Mauritânia) | The New York Times

A artista de henna se debruçou sobre a mão de sua cliente, consultando o smartphone para checar os detalhes do desenho escolhido pela moça, uma jovem que vive numa antiga cidade na Mauritânia.

Iluminada por uma lasca de lua crescente, a cliente, Iselekhe Jeilaniy, acomodou-se sobre uma esteira, como fez na véspera de seu casamento, tomando o cuidado de não deixar que a henna ainda molhada formasse manchas. Mas ela não ia se casar –ia se separar. No dia seguinte haveria sua festa de divórcio.

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Iselekhe Jeilaniy, no centro, almoça com parentes e amigas em sua festa de divórcio em Ouadane, uma pequena cidade na região desértica da Mauritânia - Laura Boushnak - 24.abr.23/The New York Times

"Atenção, casadas –minha filha Iselekhe está divorciada!", gritou a mãe de Jeilany para os moradores da cidade, ululando três vezes e batucando numa bandeja de plástico. E acrescentou a frase usada para indicar que o casamento terminou de modo mais ou menos amistoso. "Ela está viva, e seu ex, também."

Jeilaniy deu uma risadinha, olhando seu telefone. Estava ocupada postando fotos no Snapchat de suas mãos pintadas com henna. É a versão moderna de um anúncio de divórcio.

Em muitas sociedades, a separação é vista como algo vergonhoso, que carrega um estigma profundo. Na Mauritânia, porém, não apenas é normal como é motivo para festejar e divulgar que a mulher está disponível para se casar novamente. Há séculos as mulheres se reúnem para comer, cantar e dançar nas festas de divórcio de suas amigas. Agora, a tradição está sendo modernizada pela geração das selfies, com bolos com inscrições e montagens nas redes sociais, além de comida e música tradicionais.

Neste país da África oriental quase 100% muçulmano, o divórcio é frequente: muitas pessoas já foram casadas cinco ou dez vezes. Algumas, até 20 vezes. Estudiosos dizem que a nação possui a maior taxa de divórcios do mundo, mas há poucos dados confiáveis, em parte porque os acordos de separação na Mauritânia muitas vezes são apenas verbais —não chegam a ser documentados.

Segundo a socióloga Nejwa El Kettab, que estuda as mulheres mauritanas, o costume pode ser explicado em parte porque a comunidade maura, majoritária no país, herdou fortes tendências matriarcais de seus ancestrais. As festas eram uma maneira de divulgar o estado civil de uma mulher nas comunidades nômades. Em comparação com outras nações muçulmanas, disse a socióloga, as mulheres na Mauritânia têm muita liberdade e podem até seguir o que ela descreve como uma "carreira matrimonial".

Jailaniy arrumou cuidadosamente seu "melafha" —um pano comprido que envolve seu cabelo e corpo, branco para destacar a henna escura—, enquanto sua mãe, Salka Bilale, atravessava o pátio da casa familiar e cruzava os braços, posando para fotos que estampariam cartazes de sua campanha política.

Bilale também se divorciou ainda jovem. Depois, tornou-se farmacêutica e não voltou a se casar. Agora concorre ao Legislativo –a primeira candidata mulher no país— representando Ouadane. A cidade tem milhares de habitantes, que vivem em casas simples de pedra ao lado das ruínas de 900 anos atrás.

Foi graças ao divórcio que Bilale pôde fazer tudo isso. Ela se casou jovem, antes de conseguir investir em seu sonho de se tornar médica, e se separou quando percebeu que seu marido estava saindo com outras mulheres. O ex-marido, que já morreu, queria retomar o relacionamento, mas ela recusou.

Ele então cortou a ajuda financeira a Bilale, inicialmente não lhe dando nada. Mais tarde, passou a lhe dar o equivalente a cerca de R$ 150 (cotação atual) para criar os cinco filhos do casal. Precisando muito de mais dinheiro, Bilale abriu uma loja. Acabou ganhando o suficiente para voltar aos estudos. No ano passado, um hospital novo foi aberto em Ouadane, e ela, agora com mais de 60 anos, finalmente conseguiu um emprego no campo da medicina.

A experiência de suas filhas foi muito diferente. Jeilaniy se casou bem mais tarde, aos 29 anos, e Zaidouba, 28, recusou todos os pedidos de casamento que recebeu até agora, optando em vez disso por estudar e fazer uma série de estágios.

Muitas mulheres descobrem que o divórcio lhes possibilita liberdades com as quais não sonhavam antes ou durante o casamento. A abertura dos mauritanos nesse aspecto, uma atitude que parece tão moderna, convive com práticas extremamente tradicionais relativas ao primeiro casamento. É comum que os pais escolham o noivo e casem suas filhas quando elas ainda são jovens, dando-lhes pouca opção para escolher seus próprios parceiros. Mais de um terço das meninas chega aos 18 anos já casadas.

Após um divórcio, as mulheres geralmente têm prioridade na guarda dos filhos do casal, se houver. Embora os homens sejam legalmente responsáveis por pagar pensão alimentícia para seus filhos, a lei é pouco implementada, e é comum que as mulheres acabem arcando com o fardo financeiro sozinhas.

Embora muitas mulheres não planejem se separar, se isso acontece, é mais fácil para elas retomarem a vida na Mauritânia que em muitos outros países, disse El Kettab, porque a sociedade as apoia, em vez de condená-las. "Fica mais fácil virar a página", ela comentou.

No dia de sua festa de divórcio, Jeilaniy passou base no rosto e retocou suas sobrancelhas escuras com maquiagem dourada, como aprendeu no YouTube. Envolvendo-se num melafha de cor índigo, ela saiu de casa e foi para a festa, promovida por uma amiga de sua mãe na sala de sua casa modesta de pedra.

As mulheres mergulharam tâmaras em creme de leite. Comeram carne de camelo com cebolas e nacos de pão. Depois comeram arroz de uma travessa comum, formando bolinhas de arroz nas palmas das mãos enquanto conversavam. Meninos pequenos acompanhavam a festa cada vez mais ruidosa agachados do lado das janelas abertas, que em Ouadane ficam no nível da rua de areia.

A mãe das irmãs chegou e se acomodou no tapete perto de Jeilaniy, que passara boa parte da festa ao telefone, trocando mensagens e postando selfies. Bilale olhou para a filha mais velha. "Ela só quer saber de casamento e homens", comentou. "Quando eu tinha a idade dela, já estava interessada em política."

Bilale se levantou. Se Jeilaniy não queria aproveitar seu estado civil de divorciada para adiantar sua carreira e fortalecer sua independência, Bilale faria questão de usar a dela. Ela foi para a cozinha, onde tinha espiado alguns potenciais eleitores. "Vou falar com os jovens para ver se consigo votos."

Tradução de Clara Allain

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