Ucrânia desocupa antigas sepulturas para enterrar seus soldados

Com contraofensiva de Kiev no leste e no sul do país, coveiros dizem se preparar para mais mortes

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Megan Specia Brendan Hoffman
Lviv (Ucrânia) | The New York Times

Durante quase 15 meses, os corpos de soldados mortos encheram um cemitério militar numa encosta na cidade de Lviv, no oeste da Ucrânia. Agora, os túmulos antigos e sem identificação dos mortos em guerras passadas estão sendo exumados para dar lugar ao fluxo de mortos desde a invasão do país pela Rússia.

Na tarde de segunda-feira (19), meia dúzia de coveiros fizeram uma pausa na sombra, esperando que o último caixão fosse enterrado no cemitério, chamado Litchakiv. Fumando cigarros e protegendo-se do sol, eles lamentaram a devastação que a Rússia havia causado e disseram que estão se preparando para mais mortes à medida que os combates se intensificam com a contraofensiva ucraniana.

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Olena Didukh abraça a fotografia de seu marido, Bohdan Didukh, um soldado ucraniano, enquanto é consolada durante seu funeral em Lviv, na Ucrânia - Brendan Hoffman - 19.jun.23/The New York Times

Batalhas violentas ocorrem na linha de frente no leste e no sul do país, enquanto a Ucrânia relata que recapturou oito assentamentos em duas semanas de "ações ofensivas". Hanna Maliar, vice-ministra da Defesa, escreveu no aplicativo Telegram que as suas unidades avançaram cerca de 7,1 quilômetros e retomaram uma área de cerca de 120 quilômetros quadrados no sul. Entre os assentamentos recuperados, disse ela, está a aldeia de Piatikhatki, confirmando relatos russos do fim de semana.

Embora a recaptura do vilarejo seja uma evidência de que as forças da Ucrânia seguem avançando, não é um progresso significativo. Como as outras aldeias recapturadas, esta é pequena –Piatikhatki se traduz como "cinco casas"–, e reivindicá-las custou vidas ucranianas e equipamentos ocidentais avançados.

Assim como os ucranianos, os russos têm mantido segredo sobre o preço da guerra. O Kremlin não atualiza sua contagem oficial de vítimas desde setembro, quando o ministro da Defesa, Serguei Choigu, disse que quase 6.000 russos foram mortos. À época, os especialistas consideraram esse número baixo.

Documentos vazados do Pentágono e publicados em abril estimam que a Ucrânia sofreu de 124,5 mil a 131 mil baixas, com até 17,5 mil mortos em ação, enquanto os russos tiveram entre 189,5 mil e 223 mil baixas, incluindo até 43 mil mortos em ação. Uma equipe de pesquisadores de dentro e fora da Rússia liderada pela organização de notícias Mediazona e pelo serviço russo da BBC News faz uma contagem independente de mortes confirmadas que é atualizada a cada duas semanas.

Na última, a contagem ultrapassou 25 mil vítimas, também considerada abaixo da real. A equipe usa materiais públicos, como obituários em jornais locais e visitas a cemitérios. Desde que o esforço começou, no ano passado, várias regiões russas proibiram os obituários para tentar camuflar o número.

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Visitantes observam fotos de ucranianos mortos durante a Primavera Ucraniana, em 2014, e após a invasão russa - Brendan Hoffman - 19.jun.23/The New York Times

A magnitude das perdas está sendo sentida em comunidades como a de Lviv, claramente visível no número crescente de túmulos militares em cemitérios grandes e pequenos em todo o país.

Na segunda (19), dois homens que morreram a centenas de quilômetros de distância foram enterrados um ao lado do outro. Bohdan Didukh, 34, foi morto por uma mina na semana passada na região de Zaporíjia, no sul da Ucrânia, onde começaram os primeiros estágios da contraofensiva. Três dias depois, Oleh Didukh, 52, morreu de ataque cardíaco enquanto servia numa unidade de defesa aérea no oeste do país.

Os homens, que tinham o mesmo sobrenome, mas nunca se conheceram em vida, uniram-se na morte. Foram homenageados lado a lado num funeral conjunto em Lviv. Suas famílias estavam tomadas pela dor enquanto os coveiros jogavam terra sobre os caixões. Os funerais de soldados mortos viraram uma triste rotina em Lviv. E não é raro que vários funerais militares sejam realizados simultaneamente na cidade.

Uma das duras realidades da guerra é que, mesmo numa cidade distante dos combates ativos, os soldados mortos na linha de frente são devolvidos às suas cidades natais, às vezes em grupos, e enterrados ao mesmo tempo. É um método considerado eficiente quando os mortos não param de chegar.

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Coveiros enterram Bohdan Didukh e Oleh Didukh, soldados ucranianos que compartilhavam o mesmo sobrenome - Brendan Hoffman - 19.jun.23/The New York Times

Ao longo dessa encosta numa tarde ensolarada, os enlutados cuidavam dos túmulos de parentes enterrados há semanas, meses ou mais de um ano.

O filho de Mariia Kovalska, Ivan, foi morto há nove meses em Kramatorsk, na região leste de Donetsk. Ele tinha 30 anos e seu rosto redondo e olhos azuis lembravam os de sua mãe, contou ela com orgulho.

"Para que serve tudo isso?", questionou, com a dor clara em sua voz. "Os melhores dos melhores morreram. Ele se formou na universidade. Tinha um diploma com distinção. Por que morreu?"

Katerina Havrilenko, 50, que trabalha para a cidade cuidando dos túmulos, carregava terra num carrinho de mão. Há funerais aqui quase todos os dias, disse ela. "Com a contraofensiva, muitos rapazes e moças serão mortos", afirmou. "Palavras não podem expressar como é duro. Muito, muito difícil. Mesmo sendo estranhos, eles são filhos de alguém, assim como eu tenho um filho."

No início da guerra, havia um pequeno aglomerado de sepulturas recém-cavadas num morro em uma parte do cemitério. Agora, cerca de 500 soldados foram enterrados em lotes que ocupam metade da encosta, disse ela, e outros virão. Na parte superior do cemitério, as autoridades locais começaram a exumar os túmulos sem identificação de soldados que foram enterrados há tanto tempo quanto durante a Primeira Guerra —jovens que morreram no início do século passado abrem lugar para os que morrem agora.

"É tão difícil pensar –no último verão havia tão poucos", disse Havrilenko. "E agora são tantos." Ela acrescentou com um olhar distante: "Até que a guerra termine, quantos mais haverá?".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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