Descrição de chapéu The New York Times

Mortes no Irã por álcool adulterado abrem debate sobre mercado pirata

Cidadãos atribuem série de envenenamentos, ainda em investigação, a consequência do autoritarismo religioso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Farnaz Fassihi Leily Nikounazar
The New York Times

Quando um renomado artista iraniano recebeu amigos em seu apartamento em Teerã no mês passado, ele serviu, como sempre fazia, uma garrafa de aragh caseiro, uma tradicional vodca iraniana destilada de uvas, que ele conseguiu de um revendedor de confiança. Seus convidados e sua parceira não beberam naquela noite, então ele brindou aos demais e bebeu sozinho.

Em poucas horas, o artista, Khosrow Hassanzadeh, 60, ficou com a visão embaçada. Na manhã seguinte, a visão havia desaparecido, e ele estava delirando e com falta de ar. Foi levado para um hospital, onde os médicos o diagnosticaram com intoxicação por metanol.

Bebidas alcoólicas ilícitas são servidas em festa na cidade de Teerã, no Irã
Bebidas alcoólicas ilícitas são servidas em festa na cidade de Teerã, no Irã - The New York Times

Hassanzadeh entrou em coma e morreu duas semanas depois, em 2 de julho. Sua morte chocou e enfureceu iranianos que contornaram a antiga proibição da república islâmica sobre a venda e o consumo de álcool, punível com até 80 chicotadas e multa.

Em vez de conter o hábito de beber, a proibição ao longo do tempo levou a um próspero e perigoso mercado pirata. Nos últimos três meses, uma onda de intoxicações por álcool se espalhou pelas cidades do Irã com uma média de dez casos por dia de hospitalizações e mortes, segundo números oficiais.

O culpado é o metanol, encontrado em álcool destilado caseiro e garrafas de marcas falsificadas, aparentemente em ampla circulação, conforme reportagens na mídia iraniana e entrevistas com pessoas que bebem, vendem e fabricam álcool. Para muitos iranianos, as mortes são um exemplo de como as regras religiosas da República Islâmica oprimem os cidadãos e se intrometem em suas vidas.

Após a morte de Hassanzadeh, um coletivo de artistas e escritores no exílio divulgou um comunicado dizendo que ele foi, "sem dúvida, uma vítima do autoritarismo religioso". Em seu funeral, sua parceira gritou: "Nunca se esqueçam de que eles o mataram".

Hassanzadeh era conhecido nos círculos artísticos do Irã e no exterior por sua notável trajetória de vendedor de frutas em um bairro da classe trabalhadora a um célebre artista, cujo trabalho foi exibido em locais como o Museu Britânico e leiloado na Christie's e na Sotheby's.

Sua arte, uma mistura de pintura, caligrafia persa e impressão, retrata os triunfos e as lutas cotidianas dos iranianos, e seus temas incluem rituais religiosos, cicatrizes de guerra e reverência a ícones culturais, consumismo e cultura pop.

"Khosrow passou toda a sua vida tentando preservar em sua arte certos ideais, rituais e vidas de pessoas comuns no Irã. Beber aragh faz parte da cultura de socialização aqui", disse sua parceira, Shahrzad Afrashteh, em entrevista por telefone de Teerã. "Parece que ele foi morto enquanto praticava sua própria arte. Agora você não pode nem tomar uma bebida sem medo no Irã."

Artista iraniano Khosrow Hassanzadeh, que morreu após envenenamento em julho de 2023
Artista iraniano Khosrow Hassanzadeh, que morreu após envenenamento em julho de 2023 - Negar Esfandiary/The New York Times

Os governantes religiosos que tomaram o poder após a revolução de 1979, instituindo uma teocracia, proibiram o consumo e a venda de álcool, seguindo as regras islâmicas que proíbem a intoxicação. As minorias religiosas estão isentas. Ao longo das décadas, relatos de contaminações por metanol surgiram ocasionalmente, mas não no escopo e na frequência vistos nos últimos meses.

Até as autoridades agora reconhecem publicamente que o problema aumentou. Mehdi Forouzesh, legista-chefe de Teerã, disse em junho que o número de hospitalizações e mortes por envenenamento aumentou. Apenas em Teerã, subiu 36,8% desde o início de março.

Do início de maio até 3 de julho, ao menos 309 foram hospitalizados e 31 morreram por envenenamento por metanol, segundo a imprensa local. Mas o número real é provavelmente muito maior, porque muitos casos não são relatados por medo de represálias por infração da lei.

Pelo menos um legislador pediu ação para evitar mortes. Abbas Masjedi Arani, chefe da Organização de Medicina Forense do Irã, disse no mês passado que 644 pessoas morreram em 2022 por envenenamento, aumento de 30% em relação ao ano anterior. Muitas vítimas perderam a visão.

A razão para o último aumento acentuado nas contaminações por álcool permanece incerta. "Não acredito que traficantes de repente tenham decidido matar todos os seus clientes ao mesmo tempo", disse um produtor e vendedor de bebidas em Teerã.

"Traficar e fabricar álcool caseiro já é arriscado no Irã. Ninguém quer prejudicar seus clientes e seus negócios." Os traficantes, se pegos, podem ser presos, com seu estoque confiscado ou destruído.

As autoridades atribuem o aumento das intoxicações a motivos como o uso de álcool de grau industrial nas bebidas, produção desleixada, ganância dos produtores e desrespeito à segurança em busca de lucro.

Muitos iranianos adoram beber, e nada os dissuadiu de uma tradição enraizada na antiga cultura persa. Álcool caseiro e garrafas importadas de bebida circulam em muitas festas, casamentos e reuniões sociais. Alguns restaurantes servem secretamente vodca aos clientes em bules de chá.

"Beber álcool tornou-se uma forma de escapar de circunstâncias difíceis e uma maneira de nos divertirmos", diz Nina, 39, que, como muitas entrevistadas, pediu que seu sobrenome não fosse divulgado por medo. Ela disse que a crise de contaminações exige uma fiscalização adequada, mas que tem poucas esperanças de que o regime mude de rumo.

Forças de segurança jogam fora álcool e destroem garrafas apreendidas em Teerã
Forças de segurança jogam fora álcool e destroem garrafas apreendidas em Teerã - The New York Times

Alguns iranianos passaram a fazer sua própria bebida. Mostafa, 34, disse que aprendeu a destilar álcool assistindo a vídeos na internet porque tinha medo de comprar do tipo pirata. Ele comprou máquinas para destilar água de rosas, assumiu a cozinha vazia de um amigo e começou a fazer aragh.

A polícia descobriu destilarias subterrâneas em uma clínica veterinária, num barraco na beira da estrada, em uma fábrica de desodorantes e em armazéns abandonados.

O negócio de bebidas engarrafadas pode envolver operações clandestinas que pagam a catadores para recolher garrafas do lixo para serem enchidas com álcool pirata e vendidas como marcas importadas.

Especialistas dizem que é quase impossível um consumidor médio detectar numa bebida o metanol mortal, que não tem cheiro ou sabor diferente do etanol. A destilação caseira aumenta o risco de envenenamento por metanol, dizem, se o processo não for executado de forma cuidadosa e adequada.

Hassanzadeh, o artista, não confiava nas garrafas de marca pirata e preferia o aragh feito em casa, contando com um vendedor em quem confiava, segundo seu sócio. Amigos tentaram entrar em contato com o traficante, mas ele não atendeu o telefone. Alguém o viu no funeral de Hassanzadeh.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.