El Salvador pune mulheres por aborto como puniria traficantes, diz líder de ONG

Susana Chávez diz que CIDH não pode trair mulheres em decisão sobre caso emblemático do país da América Central

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Cidade do Panamá

Para a diretora-executiva do Clacai (Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro), Susana Chávez, a decisão da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) no caso conhecido como "Beatriz de El Salvador" será um marco para os movimentos que lutam pela descriminalização do procedimento.

"El Salvador possui punições extremas e inaceitáveis", afirmou a obstetra peruana à Folha durante a 7ª Conferência Clacai, realizada no Panamá, em junho. Segundo o estudo "Leis e Sombras", publicado pelo consórcio em 2023, 181 salvadorenhas foram processadas no país entre 1998 e 2019 por abortarem. No ano passado, uma mulher foi condenada a 30 anos de prisão por uma perda gestacional espontânea.

Mulheres fazem protesto em San Salvador, capital de El Salvador, em homenagem a Beatriz, salvadorenha que teve direito ao aborto negado pela Justiça local
Mulheres fazem protesto em San Salvador, capital de El Salvador, em homenagem a Beatriz, salvadorenha que teve direito ao aborto negado pela Justiça local - Jessica Orellana - 18.out.22/Reuters

Em 2022, a CIDH começou a julgar o caso de Beatriz, salvadorenha que teve o aborto negado em 2013. Ela teve que ser internada por quase três meses antes do parto para dar à luz um bebê que morreu cinco horas após o nascimento. Os defensores do caso dizem que a saúde da mulher, que morreu em 2017 após complicações depois de um acidente de carro, deteriorou-se severamente depois da gravidez.

Segundo Chávez, a decisão do primeiro caso de aborto a ser julgado pela corte pode servir de precedente para os outros países latino-americanos em que a prática é proibida. Atualmente, são quatro as nações da região que têm impedimentos totais: Honduras, República Dominicana, El Salvador e Nicarágua.

A expectativa de movimentos pela legalização do aborto é que a CIDH se pronuncie ainda em 2023 —e que a decisão seja positiva. "Caso contrário, seria a maior das traições aos direitos humanos das mulheres."

Em 2023, qual é o cenário do aborto na América Latina?
Estamos num momento de muita disputa. Por um lado, temos progresso, e os países estão cada vez mais acumulando experiências e demonstrando como seus indicadores melhoraram em termos de mortalidade materna [com a descriminalização do aborto]. Mas também temos países que pioraram drasticamente na falta de acesso e colocaram as mulheres em situações extremas.

Qual é a sua maior preocupação na América Latina hoje?
O avanço do direito ao aborto foi progressivo. As pessoas começaram a entender que a criminalização não ajuda e que há cada vez mais pessoas dispostas a ouvir. O que me preocupa são forças muito organizadas que muitas vezes chegaram aos governos, desmantelaram esses avanços, impuseram incerteza e misoginia. Se vivêssemos só pensando nesse processo de reconhecimento de direitos, haveria um progresso muito maior. Mas temos que lutar contra forças de regressão.

Quais são as "forças organizadas" que preocupam?
Movimentos antidireitos que sempre existiram, mas que sempre foram neutralizados pelos movimentos de direitos humanos. Agora, a situação está mais complexa porque eles deixaram de atuar predominantemente apenas nos Estados Unidos.

Hoje, agem também na Europa e em outros lugares. São grupos que se propuseram a se apropriar de partidos políticos e de representação cidadã. Há 20 anos eles atuavam fora do poder. Agora, decidiram assumir a liderança e assumem essa agenda porque é eleitoralmente atrativa.

Quais são hoje as principais linhas de ação do Clacai?
Movimentos de mulheres e organizações que defendem os direitos sexuais e reprodutivos estão fazendo um trabalho enorme e mudando a compreensão do direito ao aborto. O papel do consórcio é tornar esses processos mais bem articulados, mais conectados.

Os recursos que essas organizações geralmente têm são muito básicos. O que fazemos é promover o intercâmbio, fortalecer, pedir apoio diante dos desafios que estão acontecendo em cada um dos países. Além disso, incentivamos e canalizamos recursos de informação. Temos um repositório especializado em abortos, mais de mil estudos e pesquisas, por exemplo, sobre regras que regulam o aborto, algo que pode nos ajudar a entender melhor esse cenário.

A secretária-executiva do Consórcio Latinoamericano Contra o Aborto Inseguro, Susana Chávez - Reprodução/Promsex

Quais as expectativas do Clacai sobre o julgamento do caso "Beatriz de El Salvador"?
Esse caso é muito importante. El Salvador é um país com penas extremas e inaceitáveis. É um país onde a situação das mulheres é terrivelmente desigual e que tem condições muito semelhantes aos outro três países onde o aborto é totalmente banido na América Latina.

As salvadorenhas que estão presas por aborto foram condenadas a 30, 40, 50 anos e são mulheres pobres que não tiveram apoio do Estado e que estão sendo acusadas de crimes muito graves. As penas delas não têm diferença, por exemplo, para a de traficantes ou assassinos em série. É esse o nível estabelecido para mulheres pobres que já viveram uma série de falhas do Estado. São mulheres que não têm acesso a anticoncepcionais nem educação para fazer bom uso deles ou de sistemas de saúde adequados. Ou seja, é como se o crime dela fosse não ter nenhum suporte do Estado, o que acaba levando-a a essa situação.

A senhora acha que a decisão será favorável?
Meu bom senso me diz que tem que ser favorável. Não ser favorável seria a maior das traições aos direitos humanos das mulheres.


RAIO-X | SUSANA CHÁVEZ, 62

Obstetra e mestre em saúde pública, é secretária-executiva do Clacai (Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro) e diretora-executiva do Promsex (Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos).

A repórter viajou a convite do Consórcio Latino-americano contra o Aborto Inseguro

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