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Nelson Mandela passa de herói a bode expiatório em África do Sul em crise

Muitos sul-africanos pensam que ex-presidente não fez o suficiente para promover mudanças estruturais

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Lynsey Chutel
The New York Times

Nelson Mandela está em todo lugar na África do Sul. A moeda local ostenta seu rosto, há 32 ruas com seu nome e quase duas dúzias de estátuas em sua imagem observam um país em constante mudança.

Todo ano, em 18 de julho, seu aniversário, os sul-africanos comemoram o Dia de Mandela, fazendo 67 minutos de trabalho voluntário –pintando escolas, tricotando cobertores ou tirando lixo de parques—, em homenagem aos 67 anos que ele serviu ao país como líder anti-apartheid, boa parte desse período preso.

Escultura com a imagem de Nelson Mandela em Howick, na província sul-africana de KwaZulu-Natal
Escultura com a imagem de Nelson Mandela em Howick, na província sul-africana de KwaZulu-Natal - Gulshan Khan/The New York Times

Mas hoje, dez anos desde sua morte, as atitudes já não são as mesmas. O partido que Mandela liderou depois de ser libertado da prisão, o Congresso Nacional Africano (CNA), corre alto risco de perder sua maioria absoluta pela primeira vez desde que ele se tornou presidente, em 1994, na primeira eleição livre após a queda do regime de apartheid. O CNA foi maculado por corrupção, inépcia e elitismo.

Para alguns sul-africanos, a imagem de Mandela, que o CNA espalhou por todo o país, já não é a de herói. Em vez disso, ele se tornou um bode expiatório. Mandela é celebrado como herói pelo mundo afora, mas muitos sul-africanos, especialmente jovens, pensam que ele não fez o suficiente para promover mudanças estruturais que transformassem a sorte da maioria negra do país. Os brancos ainda são donos de uma parcela desproporcional das terras sul-africanas e ainda ganham 3,5 vezes mais que os negros.

Para entrar no tribunal em que trabalha, em Joanesburgo, Ofentse Thebe, 22, passa ao lado de uma estátua de seis metros de altura de Mandela jovem e pugilista. Thebe diz que evita olhar para a imagem, por medo de virar "uma bola ambulante de raiva". "Não sou o maior fã. Há muitas coisas que poderiam ter sido negociadas de uma forma melhor para garantir a liberdade a todos os sul-africanos em 1994."

Uma de suas principais queixas sobre a economia é a falta de empregos. Entre os sul-africanos na faixa dos 15 aos 34 anos, o índice de desemprego está em 46%. Milhões de outros estão subempregados, como Thebe. Ele estudou ciência da computação em nível universitário, mas não chegou a se formar. O melhor trabalho que conseguiu encontrar foi vender apólices funerárias aos funcionários do tribunal.

O labirinto de salas da corte, com colunas de mármore e placas esmaecidas, estava fechado em um dia recente devido à falta d’água em toda a cidade. Dias antes, o tribunal havia sido fechado por falta de eletricidade. Blecautes fazem parte da rotina em todo o país.

A confiança no futuro está despencando. Em 2021, 70% dos sul-africanos disseram que o país está no rumo errado, parcela que em 2010 havia sido de 49%, de acordo com a sondagem mais recente divulgada pelo Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas sul-africano. Apenas 26% disseram que confiam no governo –uma queda enorme em relação a 2005, quando foram 64%.

Na maioria dos lugares, o nome de Mandela não é associado a esses fracassos, mas ao triunfo sobre a injustiça. Há estátuas, ruas e praças Mandela em cidades que vão de Washington a Havana, de Pequim a Nanterre, na França. Nesta semana, o governo sul-africano pretende inaugurar mais um monumento em homenagem a Mandela, em seu vilarejo ancestral, Qunu, na província do Cabo Oriental.

Mas quando a notícia do novo monumento chegou a seu feed nas redes sociais, Onesimo Cengimbo, 22, pesquisadora e aspirante a cineasta, revirou os olhos. "Os velhos talvez ainda acreditem, mas nós, não", comentou ela. "Na realidade, está ficando um pouco irritante quando chega a hora das eleições. Eles não estão fazendo nada diferente na realidade, apenas voltando a exibir o rosto de Mandela."

Na turbulenta transição do apartheid, as crianças não brancas ouviam de suas famílias que Mandela era só dos líderes que lutavam por liberdade. Mas após ele sair da prisão, em 1990, viajar o mundo e conduzir o país à democracia, Mandela passou a ser visto como herói ímpar. Crianças pulavam corda em parques e cantavam: "Há um homem de cabelos grisalhos que vem de longe, seu nome é Nelson Mandela".

Para quem teve a oportunidade de estar na presença dele, Mandela deixou uma marca indelével.

Na área dos funcionários do subsolo do Hotel Sheraton Pretoria, Selinah Papo examinou um mural de fotos de hóspedes VIPs até encontrar uma imagem em preto de branco de Mandela feita em 2004.

"Era como se ele fosse banhado em ouro", afirmou ela, sorrindo. Quase 20 anos atrás ela fez parte de um grupo de camareiras que o recebeu no saguão do hotel com uma canção de louvor. A memória ainda é tão vívida que ela começou a cantarolar e fez uma dancinha de dois passos.

Papo, 45, viveu a fase áurea de Mandela. Com o retorno de cadeias de hotéis internacionais à África do Sul, ela foi progredindo na hierarquia do setor. Estudou por correspondência, custeou os estudos de seus irmãos e acabou comprando uma casa em um subúrbio antes reservado exclusivamente para brancos.

Hoje o custo de vida pesado e os blecautes sucessivos reduziram seu otimismo em relação ao país, mas ela não põe a culpa em seu herói. "Aqueles que o sucederam deveriam ter resolvido os problemas."

Mesmo alguns dos memoriais a Mandela estão sentindo o efeito dos tempos difíceis. Uma ponte em Joanesburgo que leva seu nome e que passa sobre dezenas de trens parados sobre trilhos enferrujados é um ponto de assaltos. E uma fenda começou a rachar a base do maior monumento nacional a Mandela: uma estátua de bronze de nove metros de altura em Pretória, a capital executiva da África do Sul.

Numa manhã fria, Desire Vawda observou um grupo de turistas sul-coreanos fazendo fotos ao lado do monumento. Ele disse que estava fazendo hora, porque o campus de sua universidade estava fechado em função de protestos contra as mensalidades altas e as bolsas de estudo não pagas. Vawda, 17, faz parte de uma geração que só conhece Mandela como figura histórica vista em filmes e livros didáticos.

Para ele, a luta para acabar com o apartheid foi admirável. Mas quando ele votar pela primeira vez, em 2024, estará pensando na enorme disparidade econômica entre sul-africanos negros e brancos, diz ele. "Mandela não se revoltou contra os brancos", disse Vawda. "Em seu lugar, eu teria buscado vingança."

Tradução de Clara Allain 

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