Descrição de chapéu África Crise energética

Blecautes diários e cólera expõem crise e 'lobby do carvão' na África do Sul

A menos de um ano das eleições, país vive momento-chave para transição energética, mas governo teme impactos políticos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Há mais de dez anos, cortes de energia são comuns no cotidiano dos moradores da África do Sul, a nação mais industrializada do continente. Mas nada se compara ao momento atual.

Só neste ano, foram ao menos 3.645 horas, ou 152 dias, em que alguma parte do país esteve sujeita a redução no fornecimento de energia e a apagões. E apenas dez, até aqui, em relativa normalidade.

Os avisos chegam pelo menos duas vezes por dia aos celulares: "Estamos no estágio 4, das 5h às 16h". Ao todo, são oito estágios. No 4, estima o governo, o consumidor pode ficar até seis horas sem energia.

Mãe e filha durante corte de energia em Frankfort, na região sul-africana de Mafube
Mãe e filha durante corte de energia em Frankfort, na região sul-africana de Mafube - Shiraaz Mohamed - 10.mai.23/AFP

A crise elétrica, intimamente ligada ao escândalo crônico de corrupção na concessionária Eskom, dominada por partidários do governista CNA (Congresso Nacional Africano), no poder desde o fim do apartheid, é a ponta do iceberg de uma crise maior de infraestrutura.

A esse desafio se somou outro que parecia distante do território sul-africano, a cólera. Em meados de maio, a província de Gauteng, que reúne cidades como Pretória, a capital administrativa do país, e Johannesburgo, declarou um surto da doença. Mais de 30 pessoas morreram até aqui.

"Trata-se de uma crise de infraestrutura, sem dúvidas, mas motivada por corrupção e por uma governança ruim", afirma Marisa Lourenço, analista política para África Austral.

Shawn Duthie e Michael Bongani Reinders, analistas da consultoria Control Risks, seguem o mesmo tom: "Isso se deve a anos de má manutenção, fazendo com que usinas de energia envelhecidas quebrem regularmente, juntamente com corrupção e sabotagem que exacerbam o problema".

Depois de décadas de baixa manutenção da infraestrutura elétrica e de um aumento do consumo, proporcionado pelas indústrias e por uma demanda social reprimida de acesso à rede elétrica, o sistema quase colapsou —e, para evitar esse cenário, vieram os apagões.

Para o economista Carlos Lopes, professor da Universidade da Cidade do Cabo, é impossível analisar esse cenário sem levar em conta o "lobby do carvão". "A corrupção está completamente conectada com o carvão. E o lobby impediu por muito tempo uma mudança de regulação que permitisse superar a crise e diversificar a matriz. Essa corrupção vai diretamente até o CNA [o partido no poder]."

O carvão é, afinal, o protagonista do setor de energia sul-africano, na contramão de mudanças apregoadas para mitigar a emergência climática. Quase 90% da matriz elétrica do país, segundo a Agência Internacional de Energia, é abastecida pelo mineral —no Brasil, para comparação, essa fatia é de menos de 3%.

Os lobistas atrapalharam atualizações na legislação, mas finalmente neste ano leis foram flexibilizadas para que produtores independentes de energia, muitos dos quais em busca de fontes mais limpas, passassem a produzir em larga escala.

A mudança tem duas consequências possíveis.

A primeira é permitir que o país abrace o "leapfrogging" que domina a África. O termo, literalmente "pulo do sapo" em português, refere-se a saltos tecnológicos, como uma população sem contas em bancos que, em um curto espaço de tempo, migra para a economia digital sem passar pela etapa de bancos tradicionais. Aqui, refere-se ao salto dos combustíveis fósseis para uma matriz limpa de energia.

A segunda, essa agridoce, é impactar o alto escalão do poder. O que se passa na província de Cabo Ocidental, a única do país governada pela oposição, ilustra bem a possibilidade. A região conseguiu construir uma produção energética independente.

"Quando há cortes de dez horas de energia em outras regiões, aqui ficamos seis", relata Lopes. "Isso tudo apenas com energia alternativa. Mas isso provoca uma migração interna de executivos e da elite, o que leva a riscos de impactos políticos para o CNA."

Para além do efeito sentido pelos cidadãos, a crise escalou em fevereiro após André de Ruyter, ex-chefe da estatal Eskom, afirmar na TV, usando a palavra que designa o recipiente onde se deposita a comida para o gado, que a empresa se tornou um cocho do CNA. Foi a maior denúncia pública desse esquema.

De Ruyter, que tenta se apresentar como uma espécie de herói que lutou contra todos em uma maré de corrupção, capitalizou. Em maio, lançou "Truth to Power" (verdade ao poder), sem edição no Brasil, sobre seus três anos à frente da estatal, tarefa que chama de "o trabalho mais difícil de toda a África do Sul".

"Ver colegas juniores andando por aí com bolsas Louis Vuitton, equivalentes a um mês de salário, e vestidos de Hermès, relógios Panerai e sapatos Louboutin fez-me pensar de onde diabos vinha o dinheiro", diz num trecho. "O [ex-]presidente Jacob Zuma e comparsas, incluindo a infame família Gupta [indianos envolvidos no alto escalão], infiltraram-se nos níveis mais altos, indicados para cargos-chave."

Se é certo que a corrupção é uma das protagonistas dos quase 30 anos de governo do CNA, é incerto os impactos que isso terá nas eleições do ano que vem, previstas para ocorrer no primeiro semestre.

"Essas crises se somarão aos muitos problemas de prestação de serviços que estão fazendo com que os eleitores fiquem cada vez mais frustrados com o governo do CNA, mas, embora provoquem uma pressão adicional, é mais provável que os eleitores do partido se afastem das eleições em vez de passarem a apoiar os partidos da oposição", dizem Duthie e Reinders, da consultoria Control Risks.

A África do Sul assiste a um declínio no nível de participação política. No último pleito geral, em 2019, 66% dos eleitores registrados para votar compareceram às urnas, queda de oito pontos percentuais em relação a 2014. Pela primeira vez desde 1994, menos da metade dos cidadãos elegíveis votou.

"O apoio ao CNA diminuiu, mas não acho que o partido perderá as próximas eleições", afirma Marisa Lourenço. No sistema político local, o presidente é eleito pelo Parlamento, de modo que, se o CNA não desidratar, há grandes chances de manter Cyril Ramaphosa no cargo.

"A África do Sul é uma sociedade muito militante, e protestos ocorrem com frequência. Mas as pessoas parecem menos preocupadas com os blecautes. Isso está matando a economia, mas a política é muito polarizada em questões raciais", diz ela. "O CNA ainda é considerado o melhor partido pelas credenciais de luta e porque grande parte da oposição não é vista como representante dos interesses da maioria."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.